Já com uma carreira de respeito no cinema, onde se incluem filmes como “Asako I & II”, “Roda da Fortuna e da Fantasia” e “Drive My Car, o nipónico Ryusuke Hamaguchi envolveu-se num novo projeto com Eiko Ishibashi, que compôs a banda-sonora do filme nomeado ao Oscar. Foi este que pediu ao cineasta que criasse imagens para uma apresentação musical ao vivo. Hamaguchi acedeu, filmou numa área rural a duas horas de Tóquio um pedaço de cinema mudo, deu-lhe o nome de “Gift , que estreou no Film Fest Gent em outubro passado, com acompanhamento musical ao vivo por parte de Ishibashi.

Mas o imprevisível japonês, que tanto se entrega a formalismos como a obras mais soltas, não se ficou por aí e criou “Evil Does Not Exist , que apresenta diálogos e tem mais de 30 minutos de duração. Nele as atenções estão em  Takumi (interpretado por  Hitoshi Omikae e Hana, pai e filha que enfrentam, juntamente com os outros habitantes do lugarejo, os desejos de uma grande empresa em criar um parque de campismo de luxo (glamping) numa área natural, conhecida pela sua fauna natural e água cristalina, até por quem tem serviços de restauração na área.

Enquanto vislumbramos a beleza do local, os primeiros momentos do filme são repletos de rotinas desse homem, todas ligadas ao aproveitamento natural do que a natureza lhe dá, seja a água, que carrega frequentemente para o vilarejo, seja a madeira que as variadas espécies da floresta lhe oferecem para cortar. É quando a empresa de glamping faz uma sessão participativa com a população do lugarejo, sobre os planos de construção do parque, que o verniz estala. O projeto apressado, com vista a conseguir arrecadar fundos estatais que surgiram no pós-pandemia Covid, é apresentado, não por técnicos, mas por representantes de uma empresa de talentos, os quais não garantem que o espaço natural não seja contaminado pela fossa séptica agendada para o lugar, enquanto no verão, uma época propícia a incêndios na região, teme-se que a presença de visitantes, que não são vigiados 24h por dia, pode provocar uma tragédia.

Bem antes de chegarmos a um final surpreendente de violência silenciosa que irrompe neste éden com toda a brutalidade animalesca, Hamaguchi já dá sinais que a imprevisibilidade do enredo e a mudança de tom do seu filme são coisas para se levarem a sério, desconstruindo as “garras” do capitalismo, através de duas personagens da tal agência de talentos que começam a empatizar com as ideias da população e de Takumi. Mas é tarde demais e, num jogo entre o natural e o artificialmente imposto, o estado primitivo de sobrevivência do primeiro impõe-se. Nessa luta pelo modo de ser e estar, seu e dos seus, o animal selvagem que há em nós solta-se e é difícil de travar.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
evil-does-not-exist-hamaguchi-no-reino-das-parabolasBem antes de chegarmos a um final surpreendente de violência silenciosa que irrompe neste éden com toda a brutalidade animalesca, Hamaguchi já dá sinais que a imprevisibilidade do enredo e a mudança de tom do seu filme são coisas para se levarem a sério