Com o cinema a afastar-se cada vez mais da luxúria e do erotismo que conduziu à produção de obras memoráveis no passado, especialmente nas décadas de 1970 a 2000, um filme como “Miller’s Girl”, lançado em 2024, poderia servir como lufada de ar fresco contra a repressão à transgressão da era pós #metoo, mas o ar que se respira após o visionamento desta primeira obra da dramaturga Jade Halley Bartlett tão somente é o de um bálsamo bolorento, como aquele que transpira de qualquer têxtil enfiado num baú poeirento, encerrado há décadas.

Claro está que, quando abrimos esse baú, encontramos múltiplas peças que definimos como kitsch – que nunca são efetivamente elegantes ou valiosas pela qualidade em si, mas pelas associações externas que estabelecemos com elas. Em “Miller’s Girl” sucede algo semelhante: o erotismo e o poder entusiasmante das palavras evocadas podem até ter feito o guião “blacklisted” da autora ferver, mas quando transplantadas para o cinema, ora soam artificiais, ora desoriginais, mesmo com a elegância da sua evocação. O resultado é que, no final das contas, nós, os espectadores, nunca nos colamos emocionalmente às personagens e aos eventos.

Com uma névoa gótica a trespassar todos os frames enquadrados pelo diretor de fotografia Daniel Brothers, pela música de Elyssa Samsel e direção artística e decoração dos sets de Nate DahlKemper, Jordan W. Sayman e Katie Laxton, “Miller’s Girl”, dada a diferença de experiências e vidas dos protagonistas, poderia facilmente servir de crítica ou de releitura a questões como a dinâmica de poder, o ego masculino e o desejo feminino, enquanto estudava, pelos entremeios, a desconstrução da personagem de um escritor incapaz de criar novamente e a construção de um outro, com ganas em descobrir novas sensações, locais e palavras além daquelas que a zona rural onde vive lhe oferecem.

Ao invés, e apesar de soltar uma série de pontas temáticas com a ideia que as vai aprofundar, o filme falha rotundamente naquilo que era essencial: a química intelectual e sexual entre os dois protagonistas, Jonathan Miller, um professor/escritor de meia idade (Martin Freeman), e Cairo Sweet, uma aluna adolescente (Jenna Ortega) com ambições e jeito para a escrita, ora se sente postiça, ora descamba na nulidade de nos fazer crer que há algo mais para ver que nunca irá chegar.

Isso torna-se particularmente doloroso – e consecutivamente entediante – quando aluna e professor comunicam com enorme requinte literário – algumas vezes citando autores consagrados, outras vezes, tentando retirar deles a sua essência atmosférica -, mas o máximo que conseguem é, na melhor das hipóteses, provocar risos involuntários, pois emocionalmente o espectador vai olhar para tudo como artificial, como muitos dos thrillers eróticos das décadas acima referidas também o foram. Como o filme pensa que é mais inteligente e poético do que é, e sente que tem de ser levado a sério, até a visão alternativa como objeto “camp” é sempre desmaiada.

Se acrescentarmos a isto que todas as ideias potencialmente transgressivas, ainda que evoquem o erudito, são estraçalhados pela previsibilidade das personagens e ações, então “Miller’s Girl” esvazia-se ainda mais de relevância e significado, sobrevivendo unicamente por um par de atores comprometidos com a visão de uma cineasta que, infelizmente, nunca transitou com coerência e força do guião para o grande ecrã.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
millers-girl-a-favorita-quando-a-previsibilidade-estracalha-a-promessa-de-transgressaoSe acrescentarmos a isto que todas as ideias potencialmente transgressivas, ainda que evoquem o erudito, são estraçalhados pela previsibilidade das personagens e ações, então “Miller's Girl” esvazia-se ainda mais de relevância e significado