Quinta-feira, 2 Maio

Ryûsuke Hamaguchi: “O desejo é o maior desafio para os parâmetros de conduta social”

"Roda da Fortuna e da Fantasia" estreia no cinema a 16 de dezembro

Nos momentos finais de uma das mais sólidas seleções competitivas que a Berlinale já viu nos últimos 20 anos, um filme japonês roubou os holofotes de um evento que parecia apaixonado por um drama memorialista do Líbano (“Memory Box”) e um hilário ataque à hipocrisia vindo da Roménia (“Bad Luck Banging or Loony Porn”), fazendo de Ryûsuke Hamaguchi um potencial favorito a prémios. O de argumento parece, até o momento, o mais coerente com o trabalho desse cineasta de 42 anos em “Wheel of Fortune and Fantasy” (Roda da Fortuna e da Fantasia).

Nele acompanhamos três histórias aparentemente autónomas sobre desejo, ambientadas no Japão atual, baseadas em angústias femininas. Indicado à Palma de Ouro de Cannes em 2018 com “Asako I & II” e laureado no Festival de Locarno, na Suíça, com “Happy Hour” (2015), Hamaguchi surpreendeu Berlim com “Guzen to sozo” (título original) pelo lirismo dos seus diálogos e pela acuidade como traduz a solidão. Há uma trinca de situações distintas no filme: a) uma jovem modelo fotográfica tenta estabelecer um triângulo amoroso com um quase casal; b) uma jovem cria uma armadilha afetiva para um arrogante professor ao ler um conto sexual para ele; c) uma lésbica esbarra com uma mulher na rua, que acredita ser uma velha amiga, e esta, mesmo sem ser a tal pessoa imaginada, aceita representar esse papel.

Ryûsuke Hamaguchi |© Ryogo Shioda


Na entrevista a seguir, o realizador explica como procurou investigar a solidão da sua terra natal.
Onde é que a palavra vira cinemática nos seus filmes?


No momento em que ela é filtrada pelo corpo das atrizes e dos atores e inspira uma poética na qual a naturalidade passa a guiar as representações. Palavra não é controle, é um caminho. O que eu faço é ensaiar com o elenco e procurar modos de o organismo deles se adaptar às situações que escrevo da maneira como for mais confortável para eles, pois, do contrário, tudo pode sair artificial. E este é um filme sobre a expressão do feminino, sobre a luta contra a submissão. Ele não pode parecer artificial.

Há uma recorrente sensação de solidão no filme, da qual as personagens parecem fugir, mas há também um combate contra o que é aparente. Qual é o lugar das aparências nas histórias de amor que você filma?

Aparências são zonas de conforto geradas por obstáculos morais da vida em sociedade, que se nutrem do medo e da sensação de abandono. Aparências são as máscaras geradas pela impossibilidade de dizer-se aquilo que se deseja. O desejo é o maior desafio para os parâmetros de conduta social. Este é um filme sobre o desejo, que se dá no âmbito do impasse de pessoas comunicarem-se numa sociedade como a japonesa, marcada pela sensação de isolamento já pela natureza insular da nossa geografia.

De onde vem esse seu interesse pelo desejo, que não da própria tradição cinéfila do Japão?

Vem de Cassavetes. Vem da experiência de ter visto “Os Maridos” quando tinha 20 anos, abrindo uma perceção da vida real de uma densidade que nunca vi igual. Em seu “Mulher Sob Influência” tive a perceção das forças que nos paralisam pela proibição. Esse é o tema que me angustia.

Mas o seu cinema parece dialogar diretamente com Tchekhov também. O que há do autor de “As Três Irmãs” num filme com três histórias de mulheres?

Tal analogia regozija-me, mas havia uma estrutura mais tchekhoviana em “Asako I & II”, inclusive com alusões diretas à dramaturgia dele. Aqui, a omnipresença da palavra pode levar-te a essa perceção de uma possível influência dele, que, de facto, caminha comigo. Mas eu faço-o porque as palavras ajuda-me a desenhar emoções.

[entrevista originalmente publicada em março de 2021]

Notícias