Ferrenho em sua certeza de que nada, nos simulacros e nas simulações da contemporaneidade ao nosso redor, desaparece pela escassez, mas, sim, pela profusão, o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard (1929-2007), autor de A Transparência do Mal (1991), morreu no ano em que o cineasta Philippe Garrel preparava La Frontière de l’Aube”, a única das suas longas-metragens a ser selecionada na disputa pela Palma de Ouro em Cannes. Embora cite mais Freud, e tendo O Mal-Estar Na Civilização sempre consigo, para se armar de citações freudianas, o realizador de 74 anos parece espelhar uma das teses baudrillardianas centrais no seu novo filme, o dulcíssimo Le Grand Chariot (Retrato de Família com teatro de marionetaspt), na competição pelo Urso de Ouro da Berlinale 2023.

Ele parece espelhar nas suas imagens a seguinte proposição do teórico do catastrofismo: “A desinformação vem da desmesura da informação, do seu encantamento deslumbrado, da sua repetição em círculos, que cria um campo de percepção vazio, um espaço como que desintegrado por uma bomba de neutrões, ou por uma bomba que absorve todo oxigénio em volta, tirando o nosso ar”. É a partir dessa nódoa histórica (produzimos demais, mas sem postulações, sem curadorias, sem a prova dos nove) que a longa-metragem do cineasta vai além da dimensão amorosa essencial à sua obra. É uma narrativa preocupada em alertar sobre o quanto sucateamos artes que não sabemos enquadrar nos rótulos dinâmicos de um dia a dia de descartabilidades.

Fotografado num colorido dionisíaco, sem saturações, por Renato Berta, Le Grand Chariot é estruturado a partir do desejo de Philippe em trabalhar com as duas filhas – Esther e Léna – e o filho – Louis Garrel, cada vez mais preciso nas atuações. Na trama, o cineasta evoca o passado do pai, Maurice Garrel (1923-2011), que era marionetista. Em cena, vemos uma trinca de irmãos (encarnados por Léna, Esther e Louis), um patriarca (Aurélien Recoing) e uma avó (Francine Bergé, que rouba para si todas as cenas em que aparece) dedicados a um teatro de marionetes para crianças, sempre muito frequentado. A demanda de trabalho é tanta que ele precisam contratar um funcionário, o aspirante a Van Gogh Pieter (Damien Mongin, impecável no papel). É Pieter, com a sua instabilidade emocional e a sua necessidade de se apaixonar por uma nova mulher a cada angústia, quem desarranja o pleno equilíbrio daquela trupe. É ele, também, quem melhor encarna o ultrarromantismo da filmografia de Philippe. É a personagem mais garreliano.

Vem dele o vetor de surpresa que vai delinear as andanças daquele clã de titereiros depois do pai passar mal, logo no início do filme, e a personagem de Louis tem a chance de trilhar uma bem-sucedida trajetória nos palcos, como ator. É Pietr, com os seus quadros mal traçados, quem melhor abre a discussão estética sobre o que é utilitário, o que é comercial e o que dispensável na produção artística. É, portanto, o vínculo de Philippe com a tradição dos pensadores da sua pátria que se debruçaram (preocupados) sobre a pós-modernidade, para questionar o excesso de tudo, do qual Baudrillard falava, e o excesso de preservação, de memória, de empatia. Uma empatia que vai além da fraternidade plena da família teatral descrita no guião, para expressar os descuidos e desatenções que tempos para com as tradições artísticas, até com o próprio cinema… até com a Nouvelle Vague, na qual Philippe é um fruto tardio.

Nesse debate, Le Grand Chariotdesenha-se como um exercício menos descabelado, suado e desbragado do olhar de Philippe sobre o bem querer, posicionando-se com mais acomodação na curva de filmes europeus de autor que repensam sobre a durabilidade do gesto estético, como se viu, em diferentes e particulares medidas, em The Square”, de Ruben Östund, e Objetos de Luz”, de Marie Carré e Acácio de Almeida. Logo, sempre perseverante nas suas crónicas afetivas, Garrel está em ótima companhia na sua militância.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
le-grand-chariot-arte-nao-e-sucata“Le Grand Chariot” desenha-se como um exercício menos descabelado, suado e desbragado do olhar de Philippe sobre o bem querer, posicionando-se com mais acomodação na curva de filmes europeus de autor que repensam sobre a durabilidade do gesto estético