Drive My Car”, do japonês Ryûsuke Hamaguchi é um filme sobre o poder da linguagem: da linguagem enquanto sistema de organização do mundo, como se a experiência de viver fosse a aprendizagem de uma língua capaz de iluminar o sentido de uma vida. É esta impressão meio paradoxal da existência, este “viver para se perceber o que é viver”, que o filme parece tocar de forma particularmente marcante, até mesmo pela forma como ocupa esse espaço sublime que é o intervalo entre a arte e a vida.

Adaptação do conto homónimo de Haruki Murakami, o filme conta a história de Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e encenador de teatro com um método de trabalho particular: nas suas peças participam atores de diferentes nacionalidades, um processo que faz com que as linhas de diálogo sejam ditas na língua materna de cada um dos atores. No mundo de Yûsuke, tudo é processo, como se a maneira como acedemos ao mundo fosse tão determinante como o mundo ele mesmo, como se o caminho fosse tão importante como o destino, – uma metáfora que no universo interior do filme acaba por ser bastante literal.

Em Hiroshima para dirigir a encenação de um clássico do teatro, “O Tio Vânia”, de Anton Tchekhov, Yûsuke tem por hábito memorizar os diálogos enquanto conduz até ao trabalho, um ritual que aqui é interrompido de forma inesperada: por razões de segurança, a produção exige que seja uma motorista a conduzi-lo. É essa mudança que obriga o encenador a sair da sua zona de conforto, e um dos muitos prazeres do filme resulta do “encontro” que liga Yûsuke a Misaki, a jovem condutora encarregue de conduzir o seu icónico Saab vermelho.

Com uma atenção minuciosa ao desenvolvimento narrativo, Hamaguchi procura sempre devolver a textura dramática do filme ao universo dramático da peça de teatro, uma espécie de jogo de espelhos que nos devolve uma realidade frequentemente crua, dolorosa até, uma realidade que conduz o espectador pelas várias camadas da vida de Yûsuke – e é aí no que de mais particular existe na vida de cada um que encontramos afinal o que de mais universal ainda pode haver.

É um filme belíssimo e um dos fortes candidatos aos Óscares que se aproximam.

Pontuação Geral
José Raposo
Jorge Pereira
Rodrigo Fonseca
Daniel Antero
drive-my-car-o-regresso-do-real“Drive My Car” é um filme sobre o poder da linguagem: da linguagem enquanto sistema de organização do mundo, como se a experiência de viver fosse a aprendizagem de uma língua capaz de iluminar o sentido de uma vida.