Sem margem para dúvidas, um dos objetos mais curiosos, pela sua bizarra premissa, de todo o Festival de Cannes em 2023, foi “Vincent doit mourir” (Vincent tem de Morrer), tragicomédia que descamba em thriller de horror, inserida na Semana da Crítica como sessão especial.

Assinado por Stéphan Castang, no filme seguimos Vincent, alguém tão comum, banal e invisível na sociedade que por mais que pensemos não entendemos porque todos o querem matar. Incorporado por um Karim Leklou nos pícaros da excelência na atuação, num misto de figura bruta que transparece sempre uma fragilidade, um lado ferido, Vincent começa por ter problemas no seu escritório, tudo à conta de um estagiário que, num ato profundamente irracional. o tenta matar logo no início do filme. Se o problema fosse só esse rapaz, nem tudo era mau, o teletrabalho resolvia, mas progressivamente este homem de olhos esbugalhados e frequentemente queixo caído vai perceber que existem múltiplas pessoas que o querem morto, momentos depois dele estabelecer contacto visual com elas. O mundo está louco e Vincent deve morrer.

O primeiro terço de “Vincent doit mourir” é avassalador na adrenalina, deixando o espectador numa corrida louca a uma eventual explicação do que estamos a assistir (que nunca realmente chegam), mas igualmente pela sua vertente de comédia negra, nunca explícita mas derivada da estupefação deste designer gráfico perseguido e espancado sem fazer a mínima ideia porquê. Aos poucos, com Vincent ao nosso lado, percebemos que ele não é caso único no planeta, partindo-se assim para uma outra frase, onde se abranda o ritmo e dá-se mais espaço para aprofundar nas personagens e análises das situações, sem nunca adormecer o espectador.

Em entrevista, Castang disse-nos que escreveu tudo antes do Covid-19 chegar, mas é impossível não pensar nos tempos irracionais de pandemia. E não pensar como qualquer tipo de alegoria, mas como elemento transformador para uma ou outra situação do filme, bem como para a escrita da personagem solitária de Vincent.. 

Com toques do cinema de Hitchcock e de Romero, o realizador tem o dom de conseguir escondet o jogo como se estivéssemos na caça a um tesouro, facultando – nos entretantos – algumas considerações e meditações sobre a condição humana, e como de repente somos capazes de odiar de morte alguém que nem sequer conhecemos. 

Nunca caindo na tentação de entrar na via de pseudoexplicações científicas, o cineasta francês entrega assim um filme deliciosamente macabro, que tem ainda a coragem de pôr em cena a hipótese de romance, quando coloca Margaux (Vimala Pons) na rota de um Vincent em fuga.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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