Com oitenta e dois anos e já com mais de 60 anos de carreira (“Seul ou avec d’autres”, de 1962, marcou a sua estreia no cinema), o canadiano Denys Arcand mostra em “Testament” (Acho que estou a +) que se encontra tão contemporâneo como sempre, ainda que as alcunhas que lhe dão no seu país tenham-se alterado ao longo dos tempos, deixando o epíteto de “esquerdalha”, que subscreveu através da sua filmografia, e ganhando, agora, a descrição de “velho amargurado e reacionário”, daqueles respondem com um “vão-se fo***” quando questionado se devia ter consultado os indígenas para fazer o seu mais recente filme.

Se num dos seus filmes mais aclamados, “O Declínio do Império Americano” (Le déclin de l’empire américain, 1986), o argumentista e realizador colocava em cena um grupo de personagens que, a partir da tese de um deles que a fixação da sociedade moderna na auto-indulgência era indicativa do seu declínio, discutiam inúmeras temáticas, como o valor da intelectualidade, do conhecimento, a liberdade e, principalmente, o sexo, em “As Invasões Bárbaras” (Les invasions barbares, 2003), segundo tomo do que viria a ser uma trilogia, ele atualizava o discurso ao novo milénio, com novas abordagens sobre a droga, a eutanásia, o sexo, o terrorismo, o sindicalismo e o SNS, entre muitos outros, com uma espécie de redenção pessoal e ideológica inerente. 

Quinze anos se passaram e o cineasta conhecido pelas suas sátiras bem ácidas ofereceu-nos o último capítulo, “A Queda do Império Americano” (Le déclin de l’empire américain, 2019), um apêndice às discussões abertas há anos. Agora, sob as vestes de um falso thriller, Arcand oferecia protagonistas cínicos que permeavam pelos terrenos da caducidade ideológica, a morte dos sonhos juvenis e a submissão global de todos ao dinheiro. 

Testament”, que muitos dizem ser uma espécie de “canto do cisne” do octogenário “rabugento”, não faz parte da trilogia acima, mas além de repescar o ator fetiche de Arcand, Rémy Girard, mantém-se firme na forma crítica como aborda a atualidade. E desta vez o alvo é a a nova obsessão global pelo politicamente correto, com o movimento woke a ser alvo de múltiplas piadas.

Por isso mesmo, enquanto nos conta a história de Jean-Michel Bouchard (Girard), um arquivista que vive numa casa de repouso, que perdeu a vontade de viver, Arcand belisca questões como o ativismo, a alimentação ‘saudável’, o síndroma do “homem branco salvador”, a urgência climática, o uso de pronomes/identidade de género e a hipocrisia popularucha dos partidos políticos. São temas quentes que o canadiano não tem problemas em abordar, ainda que de forma redutora, mas que pela sua natureza provocante, e com algum contraste nas posições apresentadas, nos levam a alguma reflexão, além do entretenimento escapista.

O dispositivo do enredo que vai iniciar o processo de Jean-Michel rever o seu propósito na vida é a chegada de um grupo de jovens ativistas, que à porta da casa de repouso exigem que um mural do século XIX, que mostra o francês Jacques Cartier a travar contacto com os nativos, desapareça. Se no início a chegada dos jovens é vista como apenas uma afronta juvenil localizada, rapidamente as coisas mudam com a chegada da comunicação social e do envolvimento dos políticos canadianos na discussão, em especial dos ministérios da saúde e da cultura, enquanto no parlamento (numa paródia à Coligação Avenir Québec e ao partido Québec Solidaire) a hipocrisia e populismo reina . Quem sofre mais com isso tudo é Suzanne (Sophie Lorain), uma funcionária pública, diretora da casa de repouso, que é abalroada pelo turbilhão mediático e político que o caso provoca a nível nacional, e que, no processo complexo de ter de lidar com a questão, vai se aproximando de Jean-Michel, que por sua vez encontra nela um novo propósito para a vida.

Disparando em todas as direções, com críticas à politica, imprensa, ativistas do presente, mas também às pessoas do passado, como a geração dos pais de  Jean-Michel, que se resignaram que a vida é um sofrimento e não se consegue mudar nada, Arcand entrega ao espectador, mais uma vez, um filme para se desfrutar durante a exibição e gerar discutir após o seu visionamento, mesmo que a profundidade e complexidade das personagens que as suas obras tinham no passado tenham cedido um pouco à simplificação das coisas.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
acho-que-estou-a-denys-arcand-as-voltas-com-o-politicamente-corretoDisparando em todas as direções, com críticas à politica, imprensa, ativistas do presente, mas também às pessoas do passado, Arcand entrega ao espectador um filme para se desfrutar durante a exibição e gerar discutir após o seu visionamento