Os últimos anos têm sido particularmente interessantes para a produção de filmes na Geórgia, com nomes como Ana Urushadze (Scary Mother) e especialmente Déa Kulumbegashvili (Beginning), entre outros, a fazerem as delícias dos festivais internacionais, conquistado também sucesso dentro de pequenos nichos do apelidado circuito “arthouse”. Respeitando a tradição histórica do seu cinema, que Fellini uma vez descreveu como “estranho, sofisticado, inspirador e avassalador“, este novos autores que têm trabalhado no país souberam inserir-lhe contemporaneidade, transformando toda uma transição e surgimento de novas vozes e ideias num processo orgânico, onde o decifrar imagens – mais que ler textos – continua a ser uma marca.

Juja Dobrachkous não nasceu na Geórgia, mas sim na vizinha Rússia, ainda que esteja radicada no Reino Unido há largos anos. E ela é o mais recente nome a contribuir para a produção de um país que, após a queda do regime soviético e de uma guerra muito dolorosa, andou a “patinar” no terreno autoral, tendo em algumas figuras que começaram as suas carreiras no século passado, como Otar Iosseliani, Temur Babluani e Zaza Urushadze, os escassos nomes com algum relevo internacional a darem visibilidade ao cinema da Geórgia no novo milénio. Se somarmos a estes os nomes de George Ovashvili e Nana Ekvtimishvili, que começaram efetivamente as suas carreiras na década de 2000, as contas ficam quase feitas.

Na sua primeira longa-metragem, inspirando-se na mitologia grega, Dobrachkous faz a jovem modelo Ariadna (Anushka Andronikashvili) abandonar as passerelles e regressar à pequena vila na Geórgia onde a sua falecida avó habitava. É nessa viagem e estadia – tal como acontece em “Looking for Venera” – que ela terá de lidar com certos dilemas da modernidade em pleno confronto com as tradições, logo a começar pelo ritual que terá de executar para conduzir a alma da sua avó até ao caixão onde o seu corpo agora se encontra. “Estás a brincar?”, pergunta ela a um familiar quando este lhe explica a tradição local: a avó morreu numa cama de hospital, a 25 km de distância de onde o seu corpo agora se encontra, cabendo a rapariga mais nova do agregado familiar conduzir a sua alma através do desenrolar de um fio que une os dois pontos. Não estava a brincar o familiar da jovem Ariadna que, entre montes, riachos e condições severas, durante um dia e uma noite, terá de percorrer acompanhada essa distância para que a “avó” encontre finalmente a paz.

Porém, este ritual é apenas um dos momentos onde a sua distância ao mundo tradicional e àquelas gentes a que chamamos de família revela-se. Num momento anterior, em plena histeria coletiva, as mulheres choram, gritam e esperneiam-se pelo falecimento da idosa, enquanto Ariadna – entre risos inadvertidos e lágrimas que finalmente desaguam no seu rosto – tenta mostrar que aquele sítio onde voltou tem cada vez menos significado para si. “Que impacto tem realmente a morte nos vivos?“, parece querer a realizadora questionar.

Dobrachkous, assitida pela trabalho na fotografia de Veronica Solovyeva, usa um preto e branco que além de acentuar uma atmosfera que transpira o luto permanente, carrega em si uma forma atemporal da ação, sendo usada a câmara como um par de olhos orientados para pequenas ações, e que não se foca em rostos e expressividades, individuais ou coletivas. Por isso, sentimos sempre que a câmara paira no ar, num calmo deambular, ora apontando para detalhes que à partida consideraríamos irrelevantes – o mexer de uma mão, o encher um copo, ou o retirar de um pedaço de pão -, mas que nos colocam ali, naquele local, sempre seguindo todos os movimentos que a vista capta individualmente. A todo este arranjo estético e formal soma-se um trabalho sonoro preciso e imersivo, que evoca a turbulência interna da protagonista e dessa travessia entre o moderno e o tradicional, também eles aqui ligados por um fio condutor a que chamamos legado.

Uma nota final para a permanente viagem ao passado, na forma de flashbacks, entrecortados com imagens do presente, que a realizadora nos proporciona em torno da jovem Ariadna, sendo assim também possível observar o seu distanciamento – motivado por uma infância difícil- daquele mundo que revisita, onde nunca sentiu um verdadeiro apego ou calor humano que lhe desse a estabilidade emocional que agora lhe exigem

No final temos assim um belo primeiro filme, com várias camadas poéticas por decifrar num segundo visionamento.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
bebia-a-mon-seul-desir-a-turbulencia-da-vida-e-o-peso-da-morteUm belo primeiro filme, ainda com camadas por decifrar num segundo visionamento.