Há dez anos, Hollywood tentou emplacar um marco (comercial que seja) derivado de “Gojira”, de Ishirô Honda, filme que comemorou as suas sete décadas de sucesso na Berlinale 2024. É uma insistência mercadológica; é um aceno às boas relações com as culturas asiáticas (afinal, se com a China de “Panda do Kung Fu” deu certo…); e é uma forma de exorcizar o fiasco de uma versão do réptil gigante feita por Roland Emmerich em 1998. Mas essa busca desenfreada de capitalizar dólares e prestígio popular a partir da escamosa figura nascida no Japão, em 1954, parecia fadada ao desastre depois do misto de melodrama e aventura catástrofe “Minus One”, egresso de terras nipónicas em 2023 e coroado com o Oscar de Melhores Efeitos Visuais.

Esse risco de que uma nova incursão hollywoodiana nesse universo de bichos pantagruélicos daria um fiasco estético vem do tédio absoluto que se assomava em TODOS os títulos norte-americanos da franquia inaugurada em 2014. Mas não é que “Godzilla x Kong: The New Empire” faz boa figura e se firma como uma divertidíssima exceção.

Ao apostar na assumpção de que, na realidade retratada na longa-metragem, a existência dos protagonistas e a massa de destruição por eles deflagrada são factos universalmente conhecidos, qualquer resquício (tolo) de épico cai por terra e fica, no seu lugar, um corpus dramatúrgico para eletrizantes sequências de combate. Existe um ethos de “filme B” num organismo de superprodução, no qual a montagem (de Josh Shaeffer) dá frescura aos lugares comuns e atinge o ponto preciso de ebulição cinemática nas batalhas. E que batalhas!

A fotografia hipercolorida amplia o tom excessivo de uma narrativa que diverte ao dispensar as solenidades épicas


Coautor do guião, Adam Wingard (do tenso “The Guest”) faz uma evocação direta a “Jurassic Park” (1993), procurando aliar ciência e tensões afetivas num painel sobre a selvageria que foi soterrada sob o cimento do processo civilizatório. Como na película de Steven Spielberg, uma evocação ao poema “Tigre, Tigre”, de William Blake (o mais preciso tratado artístico sobre o lado selvagem da existência) faz-se notar. O olhar ultrarromântico de King Kong leva-nos à métrica de Blake nos versos: “Nas florestas da noite/ Que mão que olho imortal/ Se atreveu a plasmar a tua terrível simetria?/ Em que longínquo abismo, em que remotos céus/ Ardeu o fogo dos teus olhos?/ Sobre que asas se atreveu a ascender?/ Que mão teve a ousadia de capturá-lo?/ Que espada, que astúcia foi capaz de urdir/ As fibras do teu coração?”.

O que vemos ao longo de 1h55 é o miocárdio do símio bater na certeza de que não está só, de que há uma população simiesca como ele, só que controlada por um déspota de pelos avermelhados que domina um ser de hálito que congela. Esse ser foi o responsável pela Era do Gelo. Hoje, submisso, pode ser o instrumento de um novo apocalipse, caso venha a sair da Terra Oca, nome dado ao Éden de onde vem Kong. O pior para ele é saber que só o seu algoz de ontem, Godzilla, pode ajudá-lo na luta contra o tal dragão do frio e, mais, contra o macaco crudelíssimo que o aprisiona.

O símio de pelos rubros que acossa os heróis gigantes

Fiel à dramaturgia de Honda, Godzilla enche a pança de radiação, devorando todos os resquícios atómicos que o planeta ainda guarda, devorando a força vital de animais gigantescos que atacam o mundo, como um crustáceo gigante. Não vale a pena rir da frase anterior. Ela nos leva a um diálogo de Wingard com a tradição japonesa dos filmes de monstros, dos desenhos animados de mechas (robôs gigantes) e dos tokusatsus, narrativas serializadas de TV ou para o cinema como “Ultraman”, “Jiban”, “Jaspion” e “Spectreman”, no qual heróis de dimensões variadas encaram criaturas imensas.

Apoiado no colorido vívido da fotografia de Bem Seresin, Wingard faz de Kong e de Godzilla os vértices heroicos do seu “The New Empire”, transformando os humanos em secundários. Rebecca Hall e (o ótimo) Brian Tyree Henry estão de volta: ela é uma cientista e ele um aspirante a influencer que filma o Mundo Oco. O que existe de mais surpreendente, nas novas aquisições do elenco, é o facto de o cineasta ter arrancado o que talvez seja a primeira atuação madura e não flamboyant do habitualmente canastrão Dan Stevens, perfeito como o veterinário Trapper. A sequência em que ele extrai um dente podre a Kong e o substitui por uma prótese metálica arranha a poesia, numa experiência cinéfila que mais parece aquelas fitas do Van Damme dos anos 1990, com o Grande Dragão Belga a surrar Tong Po e Chong Li. Mas o kickboxing que se vê aqui está nas pancadas que King Kong e Godzilla trocam com os seus rivais. Ou seja: tudo soa muito nerd, muito excessivo, mas… funciona, e explode em cena.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
godzilla-x-kong-the-new-empire-divertido-ethos-de-filme-b-em-corpo-de-superproducaoApoiado no colorido vívido da fotografia de Bem Seresin, Wingard faz de Kong e de Godzilla os vértices heroicos do seu “The New Empire”, transformando os humanos em secundários.