Carlos Marighella foi uma pessoa impressionante. Nascido do cruzamento entre uma família de escravos do Sudão com uma de migrantes italianos, aprendeu a ler aos 4 anos, respondeu a testes de física em verso, foi deputado federal (ao mesmo tempo que Jorge Amado) que, em 1946, lutou pelo 13º mês (instituído em Portugal só em 1972) e pelo direito ao divórcio (para proteger as mulheres do estigma e da situação vulnerável em que a então corrente “desquite” as deixava), viajou a Cuba e à China, deu-se com artistas e principais nomes da cultura Brasileira do séc. XX, e escreveu vários livros.

Comunista ferrenho, chorou quando em 1956 Nikita Khrushchev denunciou os crimes do regime estalinista, mas, depois de começar a questionar a doutrina do partido, foi expulso e acabou por enveredar na luta armada quando um golpe de estado, apoiado pelos EUA, depõe o presidente eleito e estabelece uma ditadura militar em 1964. Esses últimos anos de vida, antes do seu assassinato organizado, são o objecto do primeiro filme de Wagner Moura, fortemente baseado no livro de Mário Magalhães, editado em 2012.

É difícil ver esta obra agora, em pleno regime de Bolsonaro, e não pensar que foi feito em reacção a ele, mas, curiosamente, começou a ser feito ainda na altura do impeachment da Dilma, quando os movimentos de direita ainda começavam a organizar-se. Não sendo o primeiro filme sobre Marighella (até Chris Marker fez uma curta sobre ele), este é o primeiro a fazê-lo sob a forma de ficção e o primeiro a ser feito num clima político cuja aversão a ele levou a várias acções organizadas (ainda agora a pontuação no IMDB está nos 3.6 de 10, com alguns milhares de votos) e tem-se visto afetado por vários problemas de distribuição, a ponto de a data de estreia no país de origem já ter sido adiado algumas vezes.

Sendo este um filme político (que procura uma reacção social), não é sobre política (pelo menos, não sobre ideias). Na verdade, também não é sobre a vida de Marighella ou sobre as pessoas à sua volta, e toma várias liberdades artísticas para pintar, mais do que as razões para os seus actos, a resistência a um regime brutal. Ao final de mais de duas horas e meia, parece preocupado em esclarecer alguns mitos sobre a pessoa, mas simplifica outros elementos, não sendo completamente percetível para quem não conheça muito da história. Mas, acima de tudo, Wagner Moura parece querer fazer um filme de acão, com uma câmera handheld nervosa e sequências de atos ousados.

O resultado final, a nível formal, é um filme muito escuro (literalmente), com uma tonalidade castanha constante. As escolhas de Moura nem sempre fazem sentido ou não servem de todo a história contada e parecem faltar elementos mais importantes (e interessantes) da vida de Marighella.

Haveria toda uma leitura política a fazer destas escolhas, mas, reconhecendo que esse é um dos problemas da esquerda, que critica vozes que se desviam da sua e se fragmenta em detalhes, é melhor ver o que temos aqui: um filme sobre resistência face a um inimigo brutal com grandes custos pessoais. No Brasil atual, com a extrema-direita no poder e a conseguir encontrar ressonância até nas camadas mais pobres da população, este é um filme importante. Mais importante do que estar a tentar debater a razão da luta armada ou se o Comunismo será alcançável pela via democrática, é importante dar um primeiro passo de resistir e derrubar esta ideologia de ódio que alimenta o crescimento da extrema-direita em tantos países. Este filme parece ter esse objectivo e, só por isso, é recomendável.

Pontuação Geral
João Miranda
Jorge Pereira
Rodrigo Fonseca
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