Viver o Líbano dos anos 1980 à flor da pele – entre tiros, bombas, documentos averiguados e baladas roqueiras – ensinou a Maia (Rim Turkhi), a protagonista de “Memory Box” (Caixa de Memórias), que saber esquecer pode ser uma arte quando as cicatrizes que carregamos transcendem o nosso corpo e remetem-se à noção de território.

Filme mais comovente entre os concorrentes ao Urso de Ouro exibidos no primeiro dia da Berlinale, o drama de uma mulher que não consegue mais esconder-se de si mesmo é um estudo sobre o esquecimento como uma bandeira branca a ser desfraldada no combate com os fantasmas mais íntimos. A Maia que ela foi lá atrás, vivida por Manal Issa, numa representação de uma adolescência febril, escolhia tudo pelo desejo. A Maia de agora põe a razão acima das satisfações mais urgentes, preservando a sua filha Alex (Paloma Vauthier), que criou no Canadá, do que se passou no país dos seus ancestrais por conflitos políticos. Mas se existe a paz, existe a vida, para lhe impor um prazo de validade. E, quando Maia menos espera, caixas com cassetes, fotos, escritos e outros souvenirs libaneses chegam à sua casa, como que para acertarem contas com os vácuos a serem vedados.

Esta é a premissa para que o casal de cineastas Joana Hadjithomas e Khalil Joreige promovam uma bem-vinda reengenharia no melodrama, extraindo de uma lataria de aparente solidez sociológica uma medula afetiva de vasos dilatados e veias abertas. Eis que a montadora Tina Baz tem liberdade de sobra para encontrar, em parceria com Joana e Khalil, a trança certa do Ontem com o Hoje, usando vinhetas, animações e muitas conversas regadas às hormonas que nos agitam dos 15 aos 19 anos. É algo capaz de lembrar “Leto” (“Verão”, 2018), de Kirill Serebrennikov, só que menos estilizado.

Existe um poderoso painel de época em “Memory Box”, construído a partir de experiências similares às que viveu Joana. Temos o Líbano dos primeiros anos da década de 1980 diante de nós mediado por uma subjetividade entre o lirismo e as sombras de uma perda. Maia gozou aquele tempo na plenitude, até que estilhaços simbólicos de uma nação fraturada atingiram o seu lar e as escolhas do seu pai. A educação sentimental dela deu-se ali, com uma liberdade que Alex, no fim dos anos 2010, teria medo de provar. Talvez por isso, a mãe faça de tudo para que ela não vasculhe aquelas caixas, enviadas para o Canadá por uma amiga libanesa. O que ficou em Beirute deve permanecer lá. Mas Alex vislumbra naquela máquina do tempo, em forma de pequenos objetos, uma maneira de construir uma nova conexão com a sua mãe, chegando a lugares que esta nunca deixou a filha entrar. Neste momento, Joana e Khalil refinam o procedimento do seu belíssimo “Je veux voir” (2008) e separam o geopolítico do cardíaco, promovendo uma autonomia parcial entre geografia e história pessoal. Queira ou não, Maia é o Líbano. Ponto. Mas não é só o Líbano, nem é só Alex. Olhando para trás, ela dá conta onde se perdeu no presente e onde corre mais risco de perder a filha que tanto ama.

Existe uma louvável estrutura de direção que, afinada com a montagem de Tina, traduzem as sensações de outrora como algo sensorial, animado, vivo. Mas o que mais impressiona é a maneira dos dois partirem de uma pátria em guerra para fazer o inventário de uma mulher que precisa, de tempos em tempos, reinventar-se, remendando o agora com o que foi. Esse remendo, as duas atrizes que interpretam Maia, Rim e Manal, fazem com perfeição.

[Texto originalmente escrito em março 2020]

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
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