Os esquecidos” de uma América em profunda decadência económica, social e moral têm sido seguidos pelo cinema norte-americano com alguma incidência nos últimos anos, destacando-se as abordagens de forte cariz documental, entre o realismo observacional e o existencialismo ficcional das propostas de Chloe Zao (The Rider; Nomadlland), ou o anarco-punk para nichos,“Dinner in America”, que brilhou este ano em Sundance. Também “Sempre o Diabo”, estreado este ano na Netflix, falava disto tudo, mas num período anterior, que certamente – como legado – influenciou o presente.

Ron Howard, máquina industrial de construções dramatúrgicas para massas em busca de entretenimento (e emoção), pega nas memórias de J.D. Vance e do seu “Hillbilly Elegy” e adapta a filme para streaming, encontrando em Glen Close e Amy Adams, além de Gabriel Basso no protagonismo, os vínculos emocionais e de expressividade cicatrizada pelos tempos que nos arrastam para uma história libertária (o coração do filme) de triunfo sofrido de um homem que sobreviveu a uma infância difícil marcada pelo legado pobre da família.

Visitando frequentemente a infância e a adolescência de JD, a partir do presente em que a mãe dele está novamente internada por dependência das drogas, esta é uma sofrida e frequentemente estereotipada visita à cultura dos brancos apalachianos, a terra de “Hillbillies” (termo depreciativo – saloios, matarruanos) minados por uma herança de pobreza e legados familiares costurados por trauma.

Com todos os academismos habituais, muitas vezes da corrente coming-of-age, Howard carrega o dramalhão do passado e presente da vida de J.D. com objetivos abjectos: Fá-lo, não para investigar génese e as formas desses problemas sociais, nem tão pouco provocar qualquer tipo de reflexão política e humana, mas apenas para insistir no individualismo como massa fulcral para o triunfo na vida, mesmo perante todas as vicissitudes que a vida familiar e comunitária coloca. Nisto, Howard desresponsabiliza efetivamente as formas globais (políticas, económicas, religiosas, etc) que constroem o meio, e afectam posteriormente quem vive nele, insistindo antes na vivência do moribundo sonho americano, que depende apenas da resiliência pessoal para triunfar, nem que para isso se “corte” com as raízes – familiares, culturais – que nos prendem na jornada para o “sucesso”.

É que a pobreza, adições (álcool e drogas) e outras questões, são aqui tratados como contratempos individuais, motivadas por escolhas pessoais erradas, e não refletem o um problema maior comunitário, de sintomas de uma sociedade ultra-competitiva que prolifera pela extrema grandeza de uns sobre a decadência de outros.  E ao escolher a via “inspiracional”, Howard canaliza tudo para ela, movendo diferentes partes do mesmo corpo sem preencher efetivamente os espaços com “motifs” além dos pessoais.

Sim, é um filme de interpretações espampanantes,  o típico “Oscar Bait”, mas no cômputo geral este é um um objeto superficial especialmente pela vista curta do cineasta em se focar no “underdog” do costume que resiste e alimenta um sonho global há muito caducado.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
hillbilly-elegy-elegia-saloiaEm vez de meter as garras no drama de uma América em decadência, Ron Howard prefere fazer uma história de superação igual a tantas outras