É inegável a atração de Chloé Zao pelos deslocados, pelas vidas periféricas que combatem arduamente pela sobrevivência no pano de fundo de uma América nas ruínas do seu velho sonho.

Já isso se sentia em “The Rider”, que piscava o olho ao neorrealismo e existencialismo, e repete-se aqui num filme simples, tão simples, apoiado entre atores e não-atores que se entregam de corpo e alma. E se os EUA foram criados na sua fundação com a promessa de terras e de propriedade aos seus colonos, Zoe mostra aqui a história de aqueles que por opção ou necessidade económica começaram a viver uma vida nómada precária após o colapso financeiro de 2008. A base é o livro de não-ficção “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, de Jessica Bruder, uma crónica penetrante e cogitativa sobre novas (velhas) formas de sobrevivência numa civilização que transborda disparidades económicas, movidas por uma cultura capitalista muitas vezes selvagem.

Frances McDormand absorve o protagonismo por aqui como Fern, uma mulher que não se cansa de dizer e sublinhar que não é uma “sem-abrigo”, mas uma “sem casa”; sem a tal propriedade que enraizou o homem como um ser sedentário na sociedade. É ela e outra personagem chamada América e as suas paisagens estonteantes – tão inóspitas como belas – a haste de um filme que questiona o sedentarismo tradicional, o ato de ter um emprego e casa fixa onde se enraízam famílias, gerações, histórias e vivências. 

Com estas personagens, outras surgem pelo caminho – como a interpretada pelo ator David Strathairn – e nómadas reais a produzirem versões de si mesmos numa história de olhar terno e sem militâncias políticas escancaradas. É que mais que uma crítica, ou um qualquer panfleto político ou manifesto, “Nomadland” é uma observação cuidada e delicada que é capaz de produzir reflexões cirúrgicas com um tónus de introspeção, existencialismo e contemplação raros no cinema atual.

Por isso se sente no cinema de Zao uma frequente forma híbrida de contar as suas estórias, onde a ficção pura e um dedo documental de observação se fundem para criar um trabalho austero de espetacularidade, mas que cativa pela sua sensibilidade e coração. Isso revela-se também na iluminação natural (sem medo de frequentemente encadear) e nos planos escolhidos pela cineasta, que não tem pejo em enquadrar a câmara apenas no objeto que segue (Frances McDormand essencialmente), como igualmente em nos presentear com frequentes planos abertos que meditam sobre a quase insignificância do ser humano no meio de paisagens naturais que o reduzem à minudência, a uma eterna solidão e isolamento, mas que também realçam o estoicismo e individualismo de alguém que escolheu trilhar um modo de vida longe da padronizada.

E com isto Zoe entrega um dos filmes mais ímpares do ano e uma bela e apetrechada sequência autoral ao seu “The Rider”, um dos filmes mais interessantes e periféricos – tal como as suas personagens – do cinema americano recente.