O cinema sempre foi uma máquina de construir lendas, e as estrelas que dão a cara e o corpo ao grande ecrã são tão lendárias como as histórias e personagens que nele habitam. Catherine Deneuve é uma das maiores lendas do cinema mundial, e em “La Vérité” o seu carisma e reputação tomam o lugar central do palco. Interpretando um seu alter-ego, a vedeta Fabienne Dangeville, Deneuve revela coragem ao protagonizar um filme que inspeciona as sobreposições entre o artificial e o genuíno, a atuação e a realidade, a ficção e a verdade – enfim, entre as aparências e as essências. Uma indústria como o cinema, em que a distinção entre o privado (reino da intimidade, da autenticidade) e o público (esfera da publicidade e da representação) é frequentemente difusa, demonstra ser um foco pertinente para dar conta da complexidade do ser e do parecer.

Este é, afinal, um tema central do pensamento europeu pelo menos desde a Grécia antiga e é, nada mais nada menos, a questão metafísica que mais tem ocupado a filosofia desde Platão. A deslocação do realizador Hirokazu Kore-eda para a Europa, que filma aqui pela primeira vez fora do território japonês, é por isso apropriada. Após o sucesso de “Shoplifters(2018), que lhe valeu a Palme D’Or em Cannes, Kore-eda realiza uma espécie de carta de amor a Deneuve e ao cinema, seguindo, como habitual nas suas obras, a dinâmica intricada de uma família. Deneuve assume o lugar matriarcal e Juliette Binoche é a sua filha que partiu para os EUA para escapar da sombra maternal e seguir uma carreira de guionista, retornando a Paris aquando do lançamento do livro de memórias da mãe.

Deneuve surge com uma ferocidade tremenda, com um sentido de humor mordaz, sarcástico, mas sem nunca cair numa caricatura, embora seja por várias personagens considerada uma bruxa. O seu charme é um contraponto ideal à presença ressentida de Binoche, cujos medos e suspeitas, que há muito foram reprimidos e silenciados e com que agora se vê confrontada, ressurgem e obrigam-na a enfrentar a mãe. Uma terceira geração, encarnada na neta, complica tanto mais as feridas em causa, ao mesmo tempo que traz uma certa magia e inocência a estas relações – elemento típico de Kore-eda, certamente inspirado em Bergman e, neste caso, evidentemente em Jacques Demy.

Se, por um lado, La Vérité mantém esses temas centrais da filmografia de Kore-eda, por outro distingue-se completamente do trabalho que tem vindo a fazer. O estilo audiovisual desta obra é tão classicamente francês que se acreditaria que Olivier Assayas o realizara. Aliás, encontramos no seu “Clouds of Sils Maria” (2014) o par perfeito para este filme, também ele contando com Binoche e com uma complexa reflexão sobre o mundo do teatro e das performances. O que aqui é intrigante é o debate em que Kore-eda se lança sobre o ser-se mãe, ser-se filha, ser-se mulher, ser-se atriz. Cada um destes papéis é precisamente isso: mais um papel. Ser é parecer, e para parecer é necessário atuar. O segredo está nas palavras – agir é atuar, e atuar é sempre um vestir uma máscara e representar. Quando acaba a performance?

É, de forma mais ou menos literal, esta a questão que preocupa Kore-eda neste filme. O problema é que o guião, competente que seja em termos psicológicos (um pormenor particularmente tocante é o uso de repetições, como falas e gestos que vão ressurgindo), se fecha por completo sobre si próprio, deixando tudo arrumado, todos os argumentos explicados, todas as sugestões explicitamente esclarecidas. O final do filme é o maior sintoma deste defeito, aproveitando uma explicação infantil, que Binoche dá a sua filha entre um piscar de olho e um riso irónico, como conclusão simplista e redutora de toda a reflexão do filme.

Assim, também as ideias do cineasta a propósito da sétima arte são demasiado literais, empregando o clássico recurso do filme-dentro-do-filme para comentar simultaneamente as relações familiares das personagens e o papel da arte como espelho da vida. Porque embora estas se tratem de filiações orgânicas e genéticas, a verdade é que todas as relações e papéis humanos têm de ser constantemente confirmados, afirmados, reificados, concretizados – por outras palavras, atuados. Sem a atuação, sem as camadas de papéis e máscaras que assumimos, o que resta? Um caroço, uma essência, uma alma?

Seja qual for a resposta que cada um encontra para esta pergunta, a resolução de La Vérité é francamente insatisfatória. O que fica da sua argumentação é principalmente o retrato ambíguo, entre a ficção idealizada e a genuína confissão, da lenda de Deneuve no outono da sua vida. E fica também pressuposto nesse retrato o elogio à arte e ao cinema como locais por excelência onde se aposta nesse jogo das aparências para se chegar às essências.

Pontuação Geral
Guilherme F. Alcobia
Jorge Pereira
Hugo Gomes
a-verdade-ser-e-parecer-agir-e-atuarO primeiro filme que Kore-eda realiza no ocidente desdobra-se num questionamento sobre a ficção, a verdade, e o cinema como palco do fingimento poético, ao mesmo tempo que mantém o dispositivo narrativo característico do cineasta, a família.