Como em muitas grandes obras cinematográficas, a música assume um papel poderosíssimo neste Retrato. A sua utilização é esparsa, mas isso torna os momentos dominados pela música tanto mais intensos e significantes. São particularmente deslumbrantes duas sequências cuja carga emocional culmina musicalmente: uma cena noturna em que um grupo de mulheres se reúne em torno de uma fogueira e juntas acabam por entoar um cântico portentoso, e a imagem final do filme, que faz ressoar um dos movimentos das Quatro Estações de Vivaldi na face de uma das protagonistas, assombrosamente interpretada por Adèle Haenel. Nenhum espetador se esquecerá facilmente destas duas sequências.

Mas não será apenas pela mestria da sua execução. É que ambas são centrais na narrativa que dá densidade ao corpo deste retrato. Esse corpo é, por assim dizer, a união de dois: o de Marianne e o de Heloïse, uma pintora e a jovem dama que por ela deve ser pintada. Entre elas, o romance que se despoleta vem baralhar os dois lugares tão distintos que cada uma ocupa – o de observador, voyeur, moldador e o de observado, escrutinado, moldado. Ao longo do seu envolvimento, estas posições são destruídas pelas deceções e confissões que partilham, despindo-se cada uma das camadas construídas para o distanciamento social (no dizer próprio do século XVIII, boas maneiras adequadas ao ser-se Senhora).

É neste sentido que o trabalho de Sciamma é tão refrescante. As suas personagens, movidas por uma atração homossexual, não são reprimidas; o seu amor não é condicionado por fatores externos e, durante o tempo de vida do relacionamento, todos os obstáculos (sociais, psicológicos, económicos) são como que momentaneamente suspensos para permitir um fluxo de amor sem pressões. Há espaço e leveza – isoladas que estão numa ilha da Bretanha – para que entre Marianne e Heloïse se possa desenrolar um romance que, apesar do contexto histórico, parece nunca ser totalmente proibido, porque ambas tomam rédeas do seu destino em vez de por ele serem vitimadas. Esta é afinal uma atualização do mito de Orfeu e Eurídice, em que ambas as figuras são femininas e Eurídice se livra da passividade a que estava condenada na história clássica.

Estas redes inter e intratextuais que o guião tece são muito gratificantes, e na realização de Sciamma há um certo esplendor mitologizante, uma certa fantasia, que transparece em momentos sublimes de aparições, chamas ativas, cânticos espontâneos, corridas até ao abismo. O que entusiasma nesta obra, ao contrário da maioria dos seus pares, é que o que é excitante não é o amor proibido, mas precisamente o amor livre, espontâneo, natural. Apesar dos condicionamentos sociais efetivamente afetarem o rumo das personagens, eles de maneira nenhuma enfraquecem ou sequer fortificam o amor entre elas – ele é natural demais para estar acorrentado, para sequer se preocupar com o que o impede.

Isso não significa que Heloïse e Marianne se fechem totalmente sobre si próprias. Um dos elementos mais belos da obra é a amizade que nutrem por Sophie, a jovem empregada de casa. O que começa por ser cordialidade depressa se define como uma relação entre iguais que abole estatutos sociais e diferenças classistas. O apoio que ambas concedem a Sophie na sua precária circunstância – uma gravidez indesejada – revela melhor que tudo como, neste universo, a condição feminina atravessa qualquer fronteira social e une as três personagens. A condessa, mãe de Heloïse, entra também neste jogo pelos diálogos com Marianne, que se despe de toda a submissão e dirige-se à sua mecenas com o mesmo nível de compaixão e respeito que assume perante qualquer outra mulher. Se a condessa resiste, por um lado, porque no seu caso se trata de uma desvalorização, por outro gratifica-se com o conforto e o candor que pode assumir com Marianne.

Nesta constelação feminina, os homens desempenham papéis absolutamente periféricos, mas nem por isso o seu peso se perde – ou, colocando-o de forma mais justa, nem por isso o peso da estrutura social patriarcal se perde. É a promessa da mão de Heloïse a um nobre milanês que, desde o primeiro momento, condena o romance; é a chegada do criado da condessa que anuncia o seu regresso e, simultaneamente, o fim da estadia de Marianne; seria a escolha preferencial por um velho pintor para retratar Heloïse que impediria o encontro das duas amantes, não tivesse ela recusado ser pintada por ele. É, enfim, à revelia de um mundo que acorrenta as mulheres – enviadas para conventos, prometidas a futuros maridos, proibidas de controlar os seus corpos, remetidas ao anonimato, impedidas de amar quem amam – que floresce a paixão entre Marianne e Heloïse. Do vazio, da submissão, do impoder, cresce um fogo que tudo consome e que para sempre se fixa no retrato da rapariga em chamas. Qual fogo que arde sem se ver.

Pontuação Geral
Guilherme F. Alcobia
Jorge Pereira
Hugo Gomes
Fernando Vasquez
critica-retrato-de-uma-rapariga-em-chamas-um-fogo-que-arde-e-que-se-veO quarto filme de Céline Sciamma tem feito furor desde a sua estreia em Cannes, em maio passado. Finalmente nos cinemas portugueses, é hora de reconhecermos entre nós esta obra-prima contemporânea.