Dentro da Europa, em países como a Irlanda do Norte e Espanha, que viveram durante décadas confrontações intensas contra o poder instituído, na forma de grupos de libertação ou terroristas, segundo a visão pessoal de cada um, os fantasmas do passado ainda atormentam as gerações mais velhas. Nos últimos anos, Espanha tem lidado com os fantasmas franquistas e da ETA, e agora a Irlanda do Norte parece iniciar o mesmo processo.

A cineasta italiana Alessandra Celesia, que vive entre Paris e Belfast, acompanha as cicatrizes do passado no tempo presente neste “The Flats”,  focando a sua atenção num bairro operário da capital da Irlanda do Norte e em famílias, cuja angústia do passado violento, sentem ainda nos dias dores as dores e sequelas dos tempos idos.

Na competição principal do CPH:DOX, “The Flats” começa entre a sessão espírita e o exercício de terapia priscológico, observando Joe McNally, um republicano idoso católico que cumpriu pena de prisão por crimes não políticos, a relembrar um elemento chave da sua vida que o marcou para sempre: a morte do tio, quando ele tinha apenas 9 anos, nas mãos dos Unionistas/Legalistas, de origem Protestante.

No estilo que nos remete às reencenações de “The Act of Killing”, de Joshua Oppenheimer, o velório desse tio, acompanhado de perto pelo jovem Joe, é revisitado através de cenas com enorme poder visual, como se estivéssemos perante um exorcizar de demónios num puro exercício de memórias recalcadas- E o caixão desse homem vai servir também para se relembrar Bobby Sands, membro do Exército Republicano Irlandês (IRA) que morreu em greve de fome enquanto estava preso em HM Prison Maze, na Irlanda do Norte, e que serve de inspiração para o Joe nos tempos atuais na sua luta (inglória) contra os traficantes de droga que se apoderaram do bairro onde vive.

Passado e presente misturam-se então, sempre com essa guerra urbana em pano de fundo, mas o filme não se esgota em Joe. Na verdade, Celesia observa também de perto histórias de violência no passado ligadas ao patriarcado e sexismo, com a figura de uma mulher mais jovem a lidar as com suas próprias memórias de abuso, e da sua vizinha, que recria aquele episódio em que disparou sobre o marido violento com uma arma do IRA

Gesto cinematográfico de ambições reflexivas e terapêuticas, num tradicional exercício de superar as memórias dolorosas,  “The Flats” viaja entre passado e presente como um só, e nunca como duas entidades separadas. A questão política de fundo religioso, de católicos vs protestantes, ainda está bem viva na memória coletiva, digladiando-se alguns católicos, no presente, por já serem mais que os protestantes no local.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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