Ao optar por escrever sobre filmes realizados por mulheres de diferentes culturas, aprendo muito com elas e desloco-me, não apenas geograficamente, mas também da minha maneira de ver o mundo.

O filme sobre o qual escrevo desta vez é O azul do cafetã (2022), a segunda longa-metragem de Maryam Touzani (1980-), guionista-realizadora (e atriz) marroquina que cresceu em Tânger, Marrocos. A sua excelente longa-metragem de estreia foi “Adam” (2019), filme nomeado ao OSCAR. Ela fez também a curta-metragem “Aya vai a praia” (2015). 

Marrocos é um país que, quando o visitei, me encantou, mas carrega ainda hoje tradições, muitas delas opressivas, principalmente contra as mulheres.

Vamos entrar no filme. A primeira coisa a mencionar, para quem não sabe, cafetã é uma vestimenta/túnica tradicional usada por mulheres marroquinas.

EmO azul do cafetã”, durante 2 horas somos transportados para dentro do écran para conhecer uma história de amor inusitada que envolve tradições marroquinas e a tentativa da quebra de alguma delas. Uma ficção, rodada em 7 semanas na cidade de Salé, grande parte numa loja e numa residência dentro de uma das Medinas mais antigas do Marrocos numa localidade costeira, contudo, no filme não vemos o mar. Uma obra cinematográfica que nos seduz do início ao fim. 

Halim (Saleh Bakri-famoso ator palestino-israelita) e Mina (Lubna Azaba, conhecida atriz Marroquina, que atualmente vive na Bélgica) formam no filme de Touzani um casal que vive uma relação desafiante, mas feliz. Bakri e Azaba são extraordinários atores e entregam-se de corpo e sentimentos numa atuação imersiva e digna de aplausos. Mina e Halim têm uma loja de tecidos, que ela administra. Halim é um excelente alfaiate-artesão, daqueles raros. Um homem paciente, dedicado ao trabalho e a esposa, contido, respeitado, discreto, simples, refinado e atraente. As clientes disputam as cafetãs, que ele lentamente e primorosamente costura e borda a mão, como se fossem valiosas obras de arte. Segundo  Halim, “uma cafetã deve resistir ao tempo e àquelas que usam-na“. 

No plano da realidade, a profissão desempenhada por Halim está a desaparecer na cultura marroquina, como relata com pesar, a realizadora numa entrevista; profissão e tradição a qual ela valoriza muito.  Ela declara também que, para criar a personagem Halim, conversou e observou alfaiates a costurar cafetãs, em Salé, local tradicional destes alfaiates. Detalhes deste labor podem ser vistos no filme em preciosos close-ups.

Halim e Mina parecem se completar no trabalho e na vida afetiva, são amigos e amorosos um com o outro. Até surgir Yossef (Ayoub Missioui), um jovem à procura de trabalho como costureiro, ele tem as habilidades do assistente que Halim procura (e depois vamos descobrir que ele também tem habilidades de um bom amante).

 O casal possui alta demanda de encomendas de cafetãs, Mina está doente e tenta conviver com a doença que pouco a pouco vai descobrindo ser incurável, ela se dedica integralmente ao trabalho e ao marido que tanto ama, e por quem ela é visivelmente amada. 

O que ela não esperava é que a vida íntima deles se misturasse com aquela do funcionário que ajudou o marido a contratar. Halim começa a sentir-se atraído por Youssef e vice-versa. E então, desencadeia um triângulo amoroso ao estilo dos tempos modernos, com dois homens que se beneficiam mais do que a mulher, tudo entre quatro paredes, de modo familiar, sem que ninguém do exterior saiba o que se passa entre eles, seja na loja ou na residência do casal. Mina, logo percebe a atração física entre seu marido e Youssef e não gosta. No início, ela faz vista grossa à situação, pois ama o marido e quer manter o matrimónio de anos. 

Em Marrocos é proibido uma pessoa se assumir como homossexual publicamente. Entretanto, parece ser comum, às escondidas, os homens casados terem relações homossexuais paralelas, e as esposas “aceitarem” sem protestar. Um país machista e opressivo com as mulheresSegundo a realizadora, quando ela vivia em Tânger, sabia de muitos casais que viviam relacionamentos de fachada. Em certas culturas há regras sociais proibidas e tradições difíceis de serem quebradas. O filme aborda tais questões de modo cauteloso. Acho que a realizadora poderia ter sido mais crítica com relação a isto.

Voltando ao interior da narrativa fílmica, Halim vai ao Hammam (local público) com frequência tomar banho, onde partilha afetos homossexuais, íntimos e sexuais com outros homens, sem que Mina saiba. Este parece ser outro costume da cultura marroquina aceite socialmente. A sociedade cria regras de convivência, algumas delas hipócritas. A realizadora mostra tais costumes e tradições de seu país de forma  natural, sem moralismos. E relata que, com o filme, sua intenção é mostrar diferentes tipos de amor. 

A personagem mulher que ela constrói está à beira da morte, e tudo que deseja é viver, com amor, os últimos dias com o marido, ainda que ele tenha um amante homem. Penso que na atualidade as relações de amor têm sido cada vez mais diferentes, algumas libertárias, para os que partilham desta visão sem serem oprimidos.

A doença silenciosa e incurável de Mina avança, e igualmente a atração de Halim e Youssef. Então, numa cena impressionante aos 92 minutos, envergonhado e com lágrimas nos olhos, Halim confessa e pede desculpas a Mina, dizendo-lhe que toda a vida tentou reprimir-se, mas não conseguiu, nunca tendo assumido publicamente uma relação com um homem. Mina, com naturalidade, consola-o e diz que nunca conhecera um homem nobre e puro como Halim, e que não se arrepende de ser a sua esposa. O seu amor pelo marido é tão forte que a faz aceitar a situação e a relação a três.  Há uma cumplicidade e ternura impressionante entre Mina e Halim, como se tivessem sido feitos um para o outro, para além do lado homossexual dele, que sofre ao assumi-lo perante a mulher que ama. 

Noutra cena, Mina diz a Youssef que precisa de alguém que cuide do marido quando ela partir. O amor é algo complexo, todavia  às vezes simplificamos para partilhar a vida com alguém. Mina está a sofrer e suportar a dor, para aproveitar o pouco tempo que lhe resta ao lado do homem que partilhou toda a sua vida. Mina é generosa e está a morrer. Halim cuida dela com amor até o último respiro. 

O azul do cafetãé um filme belíssimo que aborda, portanto, sentimentos interiores, uma história de um amor contraditório que envolve questões ligadas aos costumes e tradições marroquinas e questões pessoais. A  câmara acompanha as personagens sem pressa e de modo preciso, como a atuação dos atores. A iluminação e os planos compostos de forma pictórica, alguns muito próximos das personagens, como se quisessem expressar a intimidade delas com um cuidado precioso. Diálogos tais como escritos no guião, sem abertura para a improvisação, cenas filmadas na ordem que foram criadas, muitos ensaios para o ator Saleh Bakri se aproximar do árabe-marroquino, ainda que no set de filmagem se comunicassem em francês e inglês e árabe. Além disso, Touzani tem um controle rigoroso da direção, inclusive discutia com a diretora de fotografia tudo antes de filmar, pensa toda a composição da imagem, as cores, o cenário e até o figurino. Tudo tem que estar em perfeita sintonia, como declarou numa entrevista. A diretora de fotografia, Virginie Surdej, já havia trabalhado com Maryam Touzani em “Adam“, a sua primeira longa-metragem. A cineasta disse também que, para compor a luz e a imagem, se inspirou na pintura de Vermeer e Caravaggio. Enfim, Touzani  e a diretora de fotografia criam juntas uma beleza imagética que é possível ver e quase tocar a textura do filme. Há delicadeza e equilíbrio em tudo.  O azul do cafetã foi produzido pelo marido da realizadora, o produtor de Cinema e TV, Nabil Ayouch (marroquino-francês).O filme recebeu o prémio FIPRESCI na secção Un certain regard do Festival de Cannes, e outros prémios em outros festivais. Está disponível online na FILMIN.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
o-azul-do-cafetaO azul do cafetã" é um filme belíssimo que aborda, portanto, sentimentos interiores, uma história de um amor contraditório que envolve questões ligadas aos costumes e tradições marroquinas e questões pessoais.