Quando na terça-feira passada, 12 de março, a polícia de choque foi mobilizada para travar os protestos generalizados devido à estreia de “Stray Bodies”, da cineasta grega Elina Psykou, no Festival de Documentário de Salónica, todo o grito fílmico, ativismo e perseverança da cineasta e do seu filme foi validado.

A verdade é que grupos de extrema-direita já tinham anunciado os seus intentos para perturbar a estreia do documentário, cujo cartaz – com uma mulher grávida com os seios nus pregada numa cruz – foi considerado uma “blasfémia” pelas autoridades eclesiásticas e políticos conservadores. Sim, isto aconteceu na Europa, em 2024!

Filmado entre a Grécia, Malta, Suíça e Itália, “Stray Bodies” questiona uma União Europeia que pouco mais consegue ser que uma união económica, acompanhando-se mulheres europeias que, para ter acesso a procedimentos médicos proibidos nos seus países, têm de atravessar fronteiras e fingir que foram fazer outra coisa, como turismo ou compras. Claro está que o procedimento médico que mais provoca revolta nas gentes que povoam esta longa-metragem é a interrupção voluntária da gravidez, mas o filme, longe disso, não se encerra aí. A fertilização in vitro e a eutanásia são abordadas a partir de vários casos pessoais e concretos, alguns deles com as duas faces da moeda.

Com elevado sentido estético e uma utilização do som, que inclui a escolha dos temas para a banda-sonora, repleta de provocações (veja-se a sequência musical que ocorre parcialmente numa igreja, com uma jovem a cantar ‘Papa don’t Preach’, evocando Madonna e o seu tema polémico), Elina Psykou faz uma verdadeira tour de force, que tanto atira para o espectador palavras debitadas por pessoas que passam por este calvário, como encena situações e chama a si a iconografia cristã, a qual nos atinge como um petardo.

Tudo começa em Malta, com Robin, uma mulher que pretende interromper uma gravidez indesejada. Neste país, o aborto é proibido em qualquer circunstância, por isso uma viagem a Itália, onde a interrupção da gravidez está regulada até aos primeiros 90 dias, é a sua escapatória. Mas Itália também tem os seus dramas, como proibir a gravidez in vitro a solteiros ou casais do mesmo sexo. Cabe então a outras duas mulheres, Katerina e Gaia, transitar para um país onde isso seja legal, saltando o filme para a Grécia. E do estado helénico e da questão in vitro saltamos para a eutanásia (palavra com origem nos termos gregos eu (boa) e thanatos (morte), significando “boa morte” ou “morte piedosa”), e para a história de Kiki, que sofre de uma doença incurável e quer terminar a vida com dignidade. Mas também temos um eclesiástico quadriplégico, nas mesmas circunstâncias, que rotundamente se nega a isso. É provavelmente nesta questão que se encontram as imagens de maior impacto, mas sempre com sensibilidade e bom senso pela realizadora, especialmente quando acompanhamos um suicídio assistido em Zurique.

Com essa sensibilidade e bom senso, além de um elevado sentido estético, tão poético como reivindicativo, e nunca perdendo a face real dos dramas humanos, Psykou filma de forma pungente o seu grito de revolta contra a ausência de autonomia das mulheres em decidir sobre o seu próprio corpo.

E para todos que acham que estes conservadores de extrema-direita estão mais moderados, vale a pena reler o início deste artigo, ver a sua reação castradora a um objeto cinematográfico, e perceber que muitas das liberdades conquistadas e que se assumem (ingenuamente) como irreversíveis estão novamente na corda bamba, tudo em nome da matriz cristã que supostamente identifica a génese da Europa.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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