Não existe duplo sentido em relação à índole do ás do piano Francisco Tenório Cerqueira Junior (1941-1946) na analogia que o título desta crítica trava com o filme homónimo de Elio Petri (1929-1982), “Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto” (1970). Existe apenas o desejo de escancarar crimes de estado ao recorrer a esse marco italiano para se falar sobre um dos mais elegantes filmes de animação da Espanha.

Doze anos passaram desde que o vencedor do Oscar Fernando Trueba (laureado em Hollywood por “Belle Epoque”) combinou a sua paixão pela música da América Latina com o designer Javier Mariscal, a fim de fazer um estudo animado sobre a liberdade de expressão: “Chico y Rita”, de 2011. Pois o mesmo tema e o mesmo formato – e a mesma indignação – voltam em “Dispararon Al Pianista” (“Mataram o Pianista”) exibido no Festival de San Sebastián, escolhido para abrir o Festival do Rio 2023 (de 5 a 15 de outubro)e presente na MONSTRA.

Versões animadas do pianista Tenório Jr. e do poeta e músico Vinícius de Moares na longa-metragem espanhola que abrirá o Festival do Rio 2023


A alusão não é cinefilia gratuita: Petri surpreendeu o cinema nos anos 1970 com um Kafka às avessas, uma espécie de “O Processo” ao revés, no qual um polícia despótico escancarava a sua culpa num assassinato para testar o poder e saía ileso, enganando o sistema. Nesse filme, aos olhos da Lei, do governo, um agente da Justiça tão ilibado jamais seria capaz de cometer um delito tão grave como matar por prazer. Já na longa-metragem de Trueba e Mariscal, o que soa kafkiano é a própria vida real, capaz de enredar um artista sem qualquer mácula no passado numa trama de desaparecimento e assassínio apenas por “estar no local errado e na hora errado”. O que se ouve nessa narrativa parte ficção, parte documentário e parte “docudrama” (a reconstituição ficcional de situações reais para dar corpo a evidências) é surpreendente e aterrorizante, mas a aposta no visual lúdico atenua uma exposição gráfica brutal da violência estatal.

Com guião escrito por Trueba, “Dispararon Al Pianista” foi calorosamente aplaudido na sua passagem por Donostia, pela exuberância da direção de arte, na qual o design de cada personagem contou com o traço do premiado ilustrador e argumentista de BDs Marcello Quintanilha (da novela gráfica “Escute, Formosa Márcia”). O protagonista da longa-metragem é um jornalista americano, com a voz de Jeff Goldblum (a mosca humana do cronenberguiano “The Fly”), que investiga o desaparecimento de Tenório. Em 1976, durante uma visita à Argentina, o músico foi comprar uma sanduíche para a namorada e nunca mais apareceu. Fontes do próprio sistema ditatorial argentino falam em execução. O corpo nunca apareceu, A lacuna que a sua desaparição gerou na MPB (música popular brasileira) é irrecuperável.

O jornalista americano e sua editora falam da investigação sobre a MPB

Realizador de produções documentais sobre o jazz hispânico, como “Calle 54” (2000) e “El Milagro de Candeal” (2004), Trueba saiu em campo em busca de depoimentos e ouviu titãs da indústria fonográfica, animando essas pessoas, mas preservando as vozes. Paulo Moura (1932-2010), Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gilda Mattoso, Caetano Veloso, João Donato (1934-2003) e Toquinho falam no processo investigativo do repórter interpretado por Goldblum, que teve tempo de ouvir o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). Quem o conduz até esse povo é um especialista em melodia e letra chamado João, encarnado (só pela voz) por Tony Ramos (de “Se Eu Fosse Você”). É João quem guia o protagonista na maioria desses encontros, que se descortinam no primeiro (e mais doce) hemisfério do filme. O segundo hemisfério, áspero, com tom de thriller, numa mirada conspiratória, passa-se na Argentina.

Gullar fala na parte inicial e faz um balanço sintético arrebatador do que se passou com Tenório a partir de um episódio envolvendo uma vidente. É um dos muitos bons causos apurados por Trueba, que evita moralismos. Ele fala de modo explícito da amante que Tenório Jr. tinha – pois era com quem ela que estava quando desapareceu– mas tem cuidado em jamais levantar sensos moralistas que possam ferir suscetibilidades ou incorrer em sexismos. O único ataque direto e franco do filme é destinado à ditadura militar das Américas, cujos fantasmas ainda estão soltos.

São arrebatadoras as passagens em que Trueba e Mariscal deixa a música de Tenório Jr. ser executada na íntegra. Igualmente arrebatadoras são as recriações de filmes de culto da Nouvelle Vague, como “Jules et Jim” (1962) em animação.

    

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
dispararon-al-pianista-investigacao-sobre-um-cidadao-acima-de-qualquer-suspeitaUm estudo animado sobre a liberdade de expressão: