Definida por dicionários qual o “Michaelis” ou o “Oxford” como “O que não está programado ou previsto; que não é regular”, a palavra “extraordinário” ganhou um outro significado na prática dramatúrgica do cinema de género, e, junta dele, recebeu ainda um hífen, sem pedir licença ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, para poder representar o mal-estar da contemporaneidade. Classifica-se de “extra-ordinário” um filme como “El Água”, concorrente espanhol ao prémio Zabaltegi-Tabakalera, de San Sebastián, depois de uma bem-sucedida ida a Cannes, na Quinzena dos Realizadores, na qual sua realizadora, Elena López Riera, disputou o Caméra d’Or.

O que tira esse silencioso e contemplativo estudo sobre a resiliência das mulheres da ordem é o facto de existir uma misteriosa conexão entre as enchentes de um rio e o ventre das jovens condenadas a desaparecer. O que as conecta é uma lenda: uma mulher, nos idos de 1600 ou 1500, verteu-se em líquido e desapareceu depois que o leito de um córrego transbordou com a chuva. Como isso aconteceu? Foi bruxaria? Foi ciência? Não se sabe. O que esses corpos possuíam para esse desaparecer? Também não se entende. É uma manifestação do tal “extra-ordinário”, ou seja, um indício da ficção fantástica que não se explica, rompendo com o “sobrenatural”, pois este, sim, tem razões, ainda que sejam no território do mágico ou do discurso científico. Num filme de terror, sobrenatural, um americano mordido por um lobo gigante em Londres transforma-se em lobisomem por existir uma doença chamada licantropia. Ainda que ela desafie a lógica e suspenda a nossa descrença, essa justificação é apresentada. No caso de uma trama como a narrada por Elena, não. Ela é uma metáfora política (feminista, no caso) de uma histórica opressão das mulheres. E, na inteligente analogia cunhada pela cineasta, a Natureza toma o lugar da barbárie.

Áspero em sua condução vagarosa, “El Água” está mais empenhado em ambientar a sua plateia num mundo de absoluta juventude, onde moças e moços sonham deixar a cidade rural onde vivem e viajar para Madrid, do que em tacar frontalmente o problema da inadequação das suas personagens, cheias de vida e apetite por descobertas, a um local pautado pela inércia. Há rituais que se repetem na maneira como Elena narra, como danças; rodas de conversa com jovens deitadas no colo de amigos ou amigas; cigarros acesos; e uma voz em off um tanto didática. É ela que nos apresenta a tal lenda do desaparecer das mulheres após um temporal. E, de vez em quando, a cineasta apela para o (inteligente) recurso de colher depoimentos de pessoas de diferentes faixas etárias para comentar o que ouviram acerca desse “causo” de desaparição e do mistério da enchente.

Custa a acontecer a tal chuva prometida. E, quando vem, o filme alcança transcendência. Até lá, peca por uma cerebral convenção de expor problemas das espanholas de hoje de maneira quase didática. Mas o uso do dispositivo “extra-ordinário”, com uma jovem imersa nas águas, inunda o ecrã de poesia.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
el-agua-a-liquidez-extra-ordinaria-da-contemporaneidadeQuando o "extra-ordinário" vem, o filme alcança transcendência. Até lá, peca por uma cerebral convenção de expor problemas das espanholas de hoje de maneira quase didática