Belíssimo primeiro filme e habilíssima adaptação de Elena Ferrante: ei-la, Maggie Gyllenhaal, atriz superlativa em estreia convincente na realização, numa produção que reúne um elenco com um talento de primeira linha. Podemos mesmo começar por aqui, pela magistral direção de atores: não há momento algum em que não se sinta a total convicção com que dão corpo à visão de Gyllenhaal, um trabalho colectivo que parece ter encontrado a sua própria pulsão, como se fosse preciso inventar uma linguagem própria para dar vida ao imaginário de Ferrante, território que aqui se revela particularmente desafiante dada a profusão de monólogos interiores do romance que esteve na origem do projeto. The Lost Daughter” (A Filha Perdida) é portanto um filme de atores: Olivia Coleman, Dakota Johnson, Ed Harris, Paul Mescal, Jessie Buckley, Peter Sarsgaard, uma constelação ofuscante mas que nunca deixa a impressão de estar a fazer número para um desses filmes de prestígio feitos a regra e esquadro a pensar na época dos prémios.

O grande trunfo de Gyllenhaal passa inevitavelmente pela maneira como instala um clima de quase-thriller cercado por um interior em ebulição, um desconsolo com a forma de uma cicatriz inesperada: a maternidade. Mais que um retrato “duro” ou “frontal” da realidade da maternidade, essa responsabilidade que também esmaga (como a dada altura afirma Leda, a académica de férias numa localidade remota da costa grega interpretada por Coleman), “The Lost Daughter” habita a ferida aberta provocada por esse período particularmente marcante da vida da protagonista, sem cair no sentimentalismo “fácil”: o que há a dizer sobre os ensinamentos que as dificuldades da vida têm para dar, raramente sai da dimensão mais subterrânea do filme. Na verdade, o arco narrativo tem pouco de redentor – e as férias, mais que um escape de uma realidade quotidiana amarga, depressa se revelam como uma oportunidade, um pretexto para trazer para o presente o fantasma da memória. Perto dos 50 anos, esse passado de Leda encontra sempre pretexto para se assomar no presente (as filhas estão hoje ambas na casa dos 20), e é esse o elo de ligação que a une a outros que como ela ali se encontram de férias. A aproximação entre Leda e Nina (Dakota Johnson), uma jovem mãe a viver ela própria esse período de adaptação e descoberta, é pois um encontro em que Leda se encontra consigo mesma.

O filme de Gyllenhaal lida com este presente olhando para o que ficou para trás, lançando-nos para o passado de Leda, para os princípios da sua carreira académica e para o tumulto de uma crise conjugal através de flahsbacks (e que extraordinária Jessie Buckley se revela no papel de Leda enquanto jovem). Com uma cinematografia capaz de visitar o passado com a mesma intensidade com que filma a intimidade do presente (excelente Hélène Louvart, que já no “Beach Rats” de Eliza Hittman demonstrou uma utilização contundente de close-ups), este intercalar de diferentes tempos narrativos tem o raro dom de nos aproximar do universo interior de Leda: personagem difícil e “crua”, mas afinal tão humana quanto a sua própria vida.

Bela estreia, magnífica Gyllenhaal.

Pontuação Geral
José Raposo
Jorge Pereira
Guilherme F. Alcobia
Rodrigo Fonseca
the-lost-daughter-lidar-com-o-presente-e-com-o-que-ficou-para-trasBelíssimo primeiro filme e habilíssima adaptação de Elena Ferrante