The Card Counter: a tortura do jogo

Estranho este cinema de Schrader, autor que como poucos foi capaz de estabelecer uma ligação emocional a uma década em particular do cinema americano, uma carreira que deu forma a um ambiente político e cultural particularmente marcante para o imaginário colectivo contemporâneo. Não só pela maneira como mobiliza o espectro da guerra para tingir de negro o pano de fundo dos seus filmes – pense-se por exemplo na sombra que o conflito do Vietnam lança na figura do protagonista de Taxi Driver, ou no peso que a guerra do Iraq deixa na consciência do pároco de The First Reformed – mas sobretudo pelo rasgão existêncial provocado por essas perturbações naquilo que pensamos ser a ordem natural do mundo. Estranho também pela magnitude de distância que separa o Schrader argumentista e o Schrader realizador: é certo que não valerá muito a pena separar estas águas pela coerência interna que o seu corpo de trabalho tem continuamente revelado ao longo de décadas, mas quando se olha de frente para este The Card Counter não se pode deixar de ficar com a impressão que é outra vez a dimensão literária do filme que mais ilumina.

O filme reabilita vários temas caros a Schrader e é verdade que o personagem de Oscar Isaac, um ex-soldado condenado pela prática de tortura em Abu Ghraib e que durante os oitos anos em que esteve preso aprendeu a contar cartas, corporiza de forma eficazmente contida esse desencontro existencial entre o homem e o mundo. Não há nele nenhum movimento que não seja estudado, numa lógica de rotina quotidiana que carrega consigo a poesia de um ritual: basta pensar na forma como se instala nos sucessivos quartos de motel que habita, cobrindo de lençois o mobiliário do espaço num exercício absurdo de apagamento do mundo. Há nele traços de uma dedicação que lembram se não o chamamento de uma vocação, pelo menos a entrega a uma profissão, numa pose que me trouxe à memória Melville mas também Mann. Sobretudo Mann. Há aliás um filme recente de Mann que continuamente me interpela como nenhum outro quando penso neste The Card Counter: Blackhat, nem mais.

Em ambos os filmes a prisão revela-se como um espaço com a capacidade de devolver ao individuo uma condição que aparentemente não consegue alcançar em sociedade, nomeadamente um encontro com o mundo mediado a partir da leitura. Não sem humor (e isto para tentar não dar de caras com a pornografia Bressoniana que aflige o filme de ponta a ponta), dei comigo a comparar estas bibliotecas de prisão: William Tell (Oscar Isaac) lê as Meditações de Marco Aurélio, ao passo que Nick Hathaway (o hacker protagonizado por Chris Hemsworth no Blackhat) se dedica entre outros títulos à Condição Pós-Moderna do Jean-François Lyotard. Dito assim até parece anedota, mas não vale a pena fingir que Schrader não é sensível à condição do homem nesta nossa contemporaneidade – não tem aliás feito outra coisa senão isso.

Pense-se por exemplo na forma como Schrader pega no imaginário que atravessa a iconografia dos motéis, ou na maneira como coloca os seus personagens num não-espaço como o do casino (não é propriamente um casino pensado pelo Soderbergh, por exemplo), ou ainda naquele passeio noturno num jardim banhado em néon, e cedo se começa a perceber que a máquina do seu cinema nunca deixou de ser alheia à pós-modernidade. De que outro modo podemos aliás olhar para aquele personagem que uma e outra vez desestabiliza a ossatura dramática do filme (e da sala de jogos, já agora), aquele palerma que não perde uma oportunidade para desatar aos gritos – “USA! USA! USA! – à medida que vai avançando nos torneios? Precisamente um dos momentos em que a inabilidade de Schrader-realizador mais se faz sentir: como se fosse preciso desencantar um boneco daqueles para se perceber que é da América que se está falar, como se fosse preciso invocar Abu Ghraib para falar de tortura. Muito se tem escrito sobre a condescendência a que o espectador de cinema tem sido votado ao longo da última década, com os filmes do universo cinematográfico da Marvel (só esta expressão…) na mira do revólver, mas o que pensar desta afirmação de Schrader; “The main red herring is Mr. USA, the big showdown. If you’re smart as a viewer, you’d say, wait a second. He’s yanking on my leg here.” Estranho cinema este, um cinema de ideias e vazio de imagens.

José Raposo

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Pontuação Geral
Daniel Antero
Jorge Pereira
Guilherme F. Alcobia
José Raposo
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