Com dois filmes no currículo que geraram um certo culto, especialmente “Goodnight Mommy”, que teve um remake norte-americano, mas também “The Lodge”, a dupla de cineastas austríacos Veronika Franz e Severin Fiala apresentou no Festival de Berlim, na luta pelo Urso de Ouro, aquele que talvez seja o seu filme mais potente. “The Devil’s Bath” (Des Teufels Bad), ficcionalizado a partir do trabalho investigativo, transformado em literário, de Kathy Stuart, leva-nos à Áustria, no século XVIII, focando a sua atenção em Agnes (Anja Plaschg em atuação sensacional), uma jovem prestes a casar com um camponês de uma aldeia próxima.

As imagens solarengas e veraneantes da cerimónia de casamento, que mostram um novo início de uma vida que se ambiciona feliz, repleta de amor e descendência (filhos), progressivamente vão se acizentado à medida que o casamento da mulher se revela um fiasco e ela se vê e entregue a uma um dia-a-dia extremamente aborrecido e limitado à sua condição de mulher num local tão cinzento como a sua relação.

Entrando no mais puro estado de depressão, entregue à letargia e derradeiramente aos pensamentos suicidas, o declínio psíquico de Agnes é acompanhado pela direção de fotografia celebrada em Berlim por Martin Gschlacht, que progressivamente dá um tom decadente cada vez maior aos espaços e personagens que filma, como que canalizando a depressão da mulher para a alma visual do filme. Assumindo que a estética de “The Devil’s Bath” é uma incisiva tradução estética da depressão que a protagonista se vê acometida, tema que não podia ser mais contemporâneo, Veronika Franz e Severin Fiala falam do passado e do presente (sente-se igualmente na evolução sonora do filme) de forma orgânica, sem nunca serem panfletários em relação a isso, ou didáticos e expositivos. Ou seja, a dupla – que bebe em algum do cinema de Ulrich Seidl, com quem Veronika trabalhou, não está ali para nos dar uma aula, ou passar uma mensagem, mas principalmente colocar o tema em debate.

E fá-lo sempre recorrendo ao seu ferramental cénico com apetência para o género e sem medo do sangue e macabro, dando luz a tempos sombrios onde a pressão social, política e especialmente religiosa levava muitos dos que queriam morrer, a recorrer ao homicídio para o fazer, conseguindo, ainda assim, a salvação às trevas*. Essa pressão, embora com peões diferentes (a igreja perdeu poder nos últimos séculos), ainda existe hoje numa sociedade capitalista que coloca sobre todos os que não se enquadram nela, e sofrem de depressão, o peso da sua inaptidão para o socialmente normalizado. E nisto, a dupla executa um objeto multidimensional (temporalmente) e com múltiplas camadas de abrangência temática (condição da mulher, depressão, pressão social), que não só enriquecem a sua condição de autores, como o próprio cinema em si.

* Os condenados por homicídio podiam pedir perdão a Deus antes da sua execução. Os que suicidavam estavam condenados eternamente às trevas.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
the-devils-bath-ensaio-sobre-a-depressaoVeronika Franz e Severin Fiala executa um objeto multidimensional (temporalmente) e com múltiplas camadas de abrangência temática (condição da mulher, depressão, pressão social), que não só enriquecem a sua condição de autores, como o próprio cinema em si.