Segunda-feira, 20 Maio

Crónicas de Tallinn: «10.000km», «Goodnight Mommy», «Red Army» e o regresso de Urszula Antoniak

Acabado o Festival de Cinema Black Nights, sem grandes surpresas reveladas pela lista de vencedores, restam-nos ainda umas menções especiais.

A primeira tem obrigatoriamente que ser para Carlos Marques-Marcet, o jovem realizador Espanhol que conseguiu eclipsar toda a avalanche de filmes baseadas em redes sociais lançadas ao longo do ano, com um filme extremamente intimo e genuíno. Refiro-me a 10.000km [na imagem acima], a historia de um jovem casal separado pelo Atlântico, mas junto pelo momentaneamente eficaz poder do skype e facebook. Todos aqueles que já se aventuraram numa relação à distância seguramente vão conhecer muitos dos rituais, prazeres e dor. As prestações de Natalia Tena e David Verdaguer são de tal forma acertadas que vos vão parecer mais genuínas do que as vossas próprias experiências. Por estas e outras razões, 10.000km é um dos mais vitais trabalhos europeus do ano.


10.000 Km

Outra surpresa foi Phoenix, de Christian Petzold. Seria uma barbaridade dizer que o filme não é suficientemente bom, já que contem um dos mais interessantes guiões do ano e algumas prestações de luxo. Mas a conversa em redor do filme desde a sua estreia em San Sebastián é de tal forma exagerada que será extremamente fácil criarem-se ilusões enganadoras. Repito, esta história de uma sobrevivente do holocausto que se confronta com o marido que a traiu para salvar a sua própria pele, tem muito de arrepiar, principalmente um final perspicaz e incrivelmente eficiente. No entanto, deixa muito a desejar como um dos mais badalados filmes de 2014. Se for encarado sem grandes expetativas seguramente será uma experiência a reter.


Phoenix

Difícil de esquecer é inquestionavelmente Goodnight Mommy dos austríacos Severin Fiala e Veronika Franz. Desde a sua estreia em Veneza que muitos o intitulam de thriller do ano e o caso não é para menos. Esta é a história de uns gémeos confrontados com o regresso da sua mãe depois de uma cirurgia plástica. Incapazes de a reconhecer, iniciam uma sádica sessão de tortura até que ela revele a sua verdadeira identidade. Sim, para encurtar uma longa história Goodnight mommy é basicamente Funny Games de Hanake com bastante mais sangue. É de realçar que não se reduz apenas a isso, sendo capaz de trazer muito de novo, em particular uma constante sensação de que algo não bate certo, e nem tudo é o que parece, já para não mencionar os vilões mais improváveis dos últimos anos. Pode ser impossível aconselhar tal aventura àqueles com um sistema digestivo mais frágil, ou aqueles com um trauma de infância graças a um infeliz tubo de super cola 3 (se virem o filme vão perceber imediatamente). Todos os outros podem entrar neste comboio fantasma despreocupadamente porque vos espera um filme que é um autêntico “abrir de olhos” (outra piada que só fará sentido depois de verem o filme) e levar a pensar: “O que é que se passa na Áustria para eles fazerem filmes deste tipo?” Doentio até mais não, mas fugazmente refrescante, Goodnight Mommy é pelo menos o “feel bad movie” do ano.


Goodnight Mommy

De salientar ainda, que fieis a um cinema com raiz e tradição, como é o caso austríaco, os créditos finais do filme encerram com um comentário interessante e que traduzido à letra diz algo do género: “Este filme foi filmado em gloriosa película.”

Num tom francamente diferente, por Tallinn também passou Red Army de Gabe Polsky. Este documentário que deve muito ao estilo popularizado por Errol Morris, dá-nos a conhecer a história da seleção nacional soviética de hóquei no gelo durante as décadas de 70 e 80, uma equipa de homens de ferro várias vezes intitulada como a equipa desportiva mais perfeita da história.

Sendo esta uma lenda soviética, obviamente que de perfeita tem pouco, levando-nos por caminhos sinuosos que incluem KGB, tentativas de deserção, famílias separadas e tudo o resto habitual neste tipo de tragédias verídicas. No entanto, o que se destaca acima de tudo é o poder das personagens: arrogantes e cruéis, mas ao mesmo tempo incrivelmente cativantes. Se a isto associarmos a edição pertinente e humorística o resultado é um documentário a não perder.

Como reza a tradição, o ultimo filme a ser inspecionado em Tallinn tinha obrigatoriamente que ser o melhor. E assim foi. Nude Area, de Urszula Antoniak, não pode ser descrito como mera revelação. Seria insultuoso para todos. Esta narrativa com muito pouco de linear permite-nos um breve e confuso olhar para um mundo secreto de uma relação lésbica entre duas jovens de estratos sociais e raças diferentes. Amesterdão é o cenário de vários encontros, na maioria silenciosos e estáticos, que aos poucos nos vão revelando os prazeres e martírios de uma relação proibida.


Nude Area

Apesar de praticamente não incluir um único dialogo e muito do processo do filme consistir em repetição das mesmas imagens e situações, não existe um único momento de tédio ao longo desta hora e meia de filme. Trata-se de um triunfo técnico, com uma fotografia de cortar a respiração e um trabalho de som que por si só preenche, propositadamente, muitos dos vazios deixados pela narrativa experimental. Nude Area exige-se por isso em grande ecrã e, à falta de melhor prova, que seja encarado como um ultimo sinal da entrada em cena do cinema holandês, cada vez mais uma fonte de algum do mais excitante cinema contemporâneo.

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