Da mesma forma que esperam pelos novos Beatles a cada nova banda ao virar da esquina desde os anos 1960, há na Inglaterra a expetativa que cada novo escritor da cena literária se torne num novo Charles Dickens (1812–1870), o que ajuda a explicar a celebração pontual de escritores com um certo perfil por terras de Sua Majestade: foi o caso de Alexander Medawar Garland, quando publicou aquele que foi o seu romance de estreia, “A Praia” (“The Beach”), em 1996. A história de um burguês com vergonha da sua classe social que resolve dar a volta a um modo de vida capitalista, tornou-se numa espécie de porta-estandarte da chamada Geração X, tornando Garland numa voz importante no romance do anos 1990. Mas essa voz teve eco curto, não tanto por ter perdido fôlego literário, mas como consequência em ter enveredado pelo cinema, escrevendo aliás excelentes argumentos, como será o caso de “28 Dias Depois” , já depois de Danny Boyle ter adaptado ao cinema aquele seu “livraço” de estreia, protagonizado por um jovem DiCaprio pós-Titanic.

Dir-se-ia que para Garland escrever (bem) não foi suficiente, já que resolveu também ele experimentar a cadeira de realizador. E é caso para dizer que começou em grande forma, com “Ex-Machina”, em 2014. Para mal dos nossos pecados, foi sol de pouca dura: é seu um dos piores filmes da década passada, justamente o filme seguinte. “Aniquilação” comete o erro de pensar que desconstruir a armadura retórica da representação do quotidiano é suficiente, e acaba por resultar numa abordagem falhada ao mundo da sci-fi.

Inconformado com o resultado final, Garland vira-se para outro género em voga, o “novo terror” (que podemos designar por“Extra-Ordinário”, pela forma como aborda temas relacionados com fenómenos sem explicação, seja no Além, no Espaço Sideral, ou mesmo no domínio científico), seguindo a receita de filmes como “Trabalhar Cansa”, “Grave” ou “Swallow”, obras que propõem causar medo pela forma como desafiam a moral.  Tudo filmes que não se apoiam numa lógica de jump scare, uma estratégia que foi seguida de perto por Garland neste “Men”, exibido no passado domingo em Cannes. E que “belo” resultado: conseguiu fazer um filme tão mau (ou pior) do que seu “Aniquilação”.

Com uma boa desculpa política – fazer uma denúncia do sexismo na esfera das populações masculinas -, “Men” partiu de uma necessária urgência discursiva em dar cabo das brutalidades perpetradas pelos homens, mas tropeçou num excesso de estilização que acaba por enfraquecer o filme. Um projeto que, para piorar, parece um clone imperfeito do “Anticristo” (2009), de Lars von Trier. Julia Ducournau foi muito mais eficaz na sua exposição da bestialidade do machismo. E o mesmo se pode dizer de” As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra. Aliás, são dois belos filmes que sabem jogar com os nervos do público. Garland soube apenas provocar tédio. Nem uma competente Jessie Buckley conseguiu escapar à fossilização de um argumento submisso a vagos devaneios experimentais. Só o ator Paapa Essiedu, no papel do marido agressor da protagonista, tem espaço para algum humanismo.

Fora isso, perdem-se cem minutos em digressões e repetições estilísticas, enquadradas com uma suposta inovação que não leva a nada. Jesse é Harper, viúva de uma relação abusiva que vai para uma casa de campo para tentar ultrapassar o luto, uma casa onde acontecem coisas estranhas, como a aparição de um invasor nu ou o aparecimento de um elemental do mato, uma criatura verde que faz lembrar o vilão Floronic Man das banda desenhadas da DC Comics. Mas não há razão nessas aparições, como atesta aliás a máxima do “Extra-Ordinário”: nessa corrente, o Mistério provoca um estado de inquietude que convida à reflexão sobre o vazio, sobre a inadequação, a falta de pertença. É o caso do formidável “Debaixo da Pele”, de Jonathan Glazer, que Garland parece querer copiar a cada plano. Mas Glazer tinha consistência nesse seu desejo de experimentação. Garland, não, o que acaba por desperdiçar qualquer hipótese de arrancar de Buckley uma performance gigante, desafiadora de tabus sexistas históricos.

A intenção era das melhores, mas foi sabotada pela falta de classe.   

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
José Raposo
Jorge Pereira
men-um-arrepio-em-forma-de-tedio"Men" partiu de uma necessária urgência discursiva em dar cabo das brutalidades perpetradas pelos homens, mas tropeçou num excesso de estilização que acaba por enfraquecer o filme.