Com o seu design de Hammer Film Productions, que dá a Gotham City dos anos 2020 o sombrio visual de uma longa-metragem com Peter Cushing (1913–1994) da década de 1950, tipo “The Hound of the Baskervilles”, o regresso do Homem-Morcego é uma narrativa em formação que se debruça sobre a génese, não de um mito, como a maioria das histórias de super-heróis fazem, e, sim, de um Homem, demasiadamente humano e “nietzscheanamente” confrontado pela tese de que o diamante só nasce do embrutecimento do carvão.

E como arde a carvoaria afetiva de Bruce Wayne num filme que rasga a cartilha da aventura, substituindo-a pela do thriller alinhado ao filme de culto de 1995 “Se7en” (Sete Pecados Mortais), de David Fincher. Aliás, é difícil pensar numa estrutura mais “fincheriana” do que a produção dirigida por Matthew George “Matt” Reeves, realizador de 55 anos que reinventou a franquia “Planet of The Apes” (Planeta dos Macacos) em 2014 e 2017 com duas distopias. Embora esbanje referências ao cinema gótico inglês de horror dos anos 1940, 50 e 60 (via Hammer) na direção de arte, no nevoeiro, o zeitgeist da sua Gotham vem de uma América indie dos anos 1990, de onde veio Fincher, apesar deste ter passado pela escola dos videoclipes e de ter estreado com “Alien 3”, em 1992, sob a égide da Fox.

Na era 90’s, nada era mais independente do que a releitura dos Sete Pecados Capitais à luz do carisma de Brad Pitt e Morgan Freeman, retomada aqui na combinação entre o competente Wayne de Robert Pattinson e o vulcão em erupção que é o comissário Gordon de Jeffrey Wright. O filme só não é dele porque Reeves encontrou em Paul Dano o que Fincher conseguiu, lá atrás, com Kevin Spacey: um psicopata que alcança o status de monstro sem precisar se animalizar, arrefencendo a sua desumanidade, gelando a sua falta de empatia ao sub zero. Dano transforma The Riddle, o Enigma, que no Brasil é conhecido como Charada, numa criatura aterrorizante, com feições de gárgula, na sua fantasia de verdugo, capaz de ultrapassar toda a fragilidade da personagem na banda desenhada. Não se trata de mais uma encarnação da Maldade corriqueira do arquétipo da vilania mas de uma representação do descontrole. Um descontrole que beira a anarquia.

É a partir dela que o filme de Reeves se impõe politicamente e se aproxima do Fincher mais soberbo, o de “Fight Club” (1999), representando alguém que não deseja aquisições, nem resgates milionários, nem trocas de cabeça. O Riddler só quer a desordem para inaugurar uma ordem nova a partir do caos de uma Gotham corrupta. Corrupção essa tonificada no falar manhoso e nos trejeitos sedutores de Carmine Falcone, personagem que John Turturro leva ao planalto da ambivalência, como é comum ao formato noir com o qual Reeves dialoga a toda a hora. Não por acaso, o gangster nº1 de Gotham tem na Catwoman de Zoë Kravitz (ótima atuação) como uma aresta a ser aparada. Afinal, a anti-heroína (por vezes, vilã) é a ambivalência em carne viva. E não há como não ser ambivalente numa arte que tenta, de alguma forma, ser resposta ao seu tempo, este tempo de polarização.

Ninguém mais necessário a ser evocado, agora, do que o bielorrusso Sergei Loznitsa, cronista da Ucrânia, para se entender o que essa fauna de tipos decalcados dos comics simbolizam: “Falar do tempo é falar do exercício lúcido da vida”, diz o realizador de “In The Fog” (2012). À sua maneira estilizada, a influência noir em Reeves é um convite a conduzir a plateia ao lugar do lúcido. A entender que suspenses de investigação criminal, onde nada é certo e onde não existe retidão, são frutos da falência das metanarrativas que reinavam até a eclosão de duas revoluções no Velho Mundo: a Francesa e a Industrial. Ambas construíram, numa parceria histórica, uma divisão de classes entre burgueses e proletários, diminuindo o protagonismo da aristocracia de onde vem o Wayne de Pattinson, atirando às periferias das urbes uma massa de miseráveis excluídos. Algo que, em algum momento deste potente filme, há de fazer sentido acerca do Enigma.

Mas o que importa ser discutido sobre as Revoluções que liquidaram a Era Moderna e nos levaram a um contemporâneo da fluidez, de vivências liquidas, é que a massa de excluídos que se formou encontrou duas expressões artísticas históricas na prosa que o cinema importou, ambas pautadas pelo excesso: o melodrama, de um lado; o terror, de outro. O noir, é uma mistura dos dois. É o medo espalhado entre as massas, num âmbito passional, onde todo o perigo vem da dubiedade. Não por acaso, logo no início, o Batman diz: “O medo é uma ferramenta”. Um Batman caracterizado na maquilhagem de Samantha Denyer, Kat Ali, Naomi Donne e outros talentos como um Edgar Allan Poe (1809–1849) cosmopolita. Basta olhar o visual emo de Pattinson e prestar atenção para o texto em off que ele regurgita. Não por acaso, a criação do Batman por Bob Kane (1915-1998) e Bill Finger (1914-1974), em 1939, na qual a sala de Bruce Wayne é invadida por quiróptero, evoca o mais famoso poema de Poe: “The Raven” (O Corvo”, 1845). Aliás, uma estrofe dele pode dimensionar o que Reeves fez:

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
”.

Doce seria Gotham se Riddler apenas pousasse e voasse. Os seus estragos são grandes, a ponto de obliterar por completo a silhueta de bandido que Colin Farrell, palidamente, em atuação quase constrangedora, tenta esboçar para o Pinguim. O que lhe sobra de relevância é explicar aos leigos no universo do Cruzado de Gotham que ele, diferentemente da maioria dos seus algozes, não é um louco. É apenas um gangster com aparência exótica. Mas Farrell limita-se a uma caricatura, atomizado pelo Falcone de Turturro, que houve a canção “I Have But One Heart”, na voz de Al Martino, numa referência explícita a “The Godfather” (1972). Mas nem o mafioso de Turturro faz lembrar os bandidos da Nova Hollywood, dos anos 1970. Ele se parece mais com as figuras que o seu intérprete criou nos anos 1990, com os Irmãos Coen e com Spike Lee, em parte pelo facto de todo o ethos se reportar a “Se7en”, que consolidou a estética daquela década.

Há, no trecho final, um toque quadrinístico de mais peso, com elementos da banda desenhada mais explícita, em alusão à saga “Cataclysm”. Mas, de modo geral, o que temos ao longo de duas horas e 55 minutos (bem usadas, numa precisão de relógio suíço) é um espetáculo cinemático, que procura, num diálogo com o cinema de duas décadas e meia atrás, uma nova forma de descarregar o pop dos seus vícios. E com a força de Jeffrey Wright encarnando Gordon, a experiência é mais vívida. A sua argúcia serve como propulsão para Pattinson, que fragiliza Wayne na medida certa.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Guilherme F. Alcobia
Jorge Pereira
the-batman-a-educacao-pela-aspereza-num-tributo-aos-anos-1990Como arde a carvoaria afetiva de Bruce Wayne num filme que rasga a cartilha da aventura, substituindo-a pela do thriller alinhado ao filme de culto de 1995 “Se7en”