A família ​​é tudo, é onde as pessoas se formam, se constroem. E ao explorar as falhas da família, eu exploro também as falhas da sociedade.

Emma Dante

As irmãs Macaluso” (Le sorelle Macaluso, 2020) é a segunda longa-metragem de Emma Dante (1967). Inspirado na peça de teatro com o mesmo nome e da mesma autora, a dramaturga e realizadora italiana. Contudo, ela se distancia da estética e encenação teatral para criar a narrativa fílmica. 
Com duração de 94 min, a ficção expõe a história de uma família composta só por mulheres que vivem na cidade de Palermo, Sicília, Sul da Itália; local onde a realizadora nasceu e vive.
Um filme feito por uma mulher, um olhar feminino sobre a vida de outras 5 mulheres, todas protagonistas da história que contam. Uma história que questiona o papel da família e da mulher.  
É muito importante que nós mulheres ocupemos cada vez mais funções de visibilidade dentro da cadeia produtiva do cinema e que possamos contar as histórias do universo feminino sob o nosso ponto de vista. 

O que vemos em “As  irmãs Macaluso” é a temporalidade da existência de cinco irmãs: Lia (a mais velha), Pinuccia, Maria, Kátia e Antonella (a mais nova). Vemos a expressão dos seus afetos e a metamorfose sentimental e física dos seus corpos, a transformação das personagens. Dos pais nada sabemos. Uma ficção centrada, portanto, em narrativas de mulheres que vivem praticamente dentro de um velho apartamento à beira mar. Um drama que envolve a intimidade familial. A família é o tema central do trabalho de Emma, seja no teatro, na literatura ou no cinema. 

Na primeira parte do filme as cinco mulheres expressam uma cumplicidade fraternal agradável.         Logo a seguir, a mais nova delas morre acidentalmente na praia da cidade onde vivem e a dor da perda vai permear os seus corpos e mentes durante todo o filme. 

Na segunda e terceira parte de “As  irmãs Macaluso” vamos então acompanhar o tempo quotidiano e as experiências conflituosas das quatro irmãs sobreviventes, cujo vínculo que havia entre elas de certa forma se quebra.

As personagens são mostradas em diferentes fases da vida: infância, juventude e velhice, mulheres que carregam o peso de resistir no tempo. Elas permanecem bloqueadas no luto e partilham o senso de culpa, habitam uma espécie de casa-cárcere confinadas entre quatro paredes.

Uma casa, que é também personagem e tem forte presença do espaço ocupado, contém a carga energética de todos que ali viveram e de tudo que lá sobrevive. Numa entrevista dada em Itália, Emma Dante relata que uma casa é como um corpo cheio de segredos e frustrações. E eu completaria: e igualmente cheia de memórias e camadas de tempo.

Na construção da história de “As irmãs Macaluso“, a realizadora deixa entrever uma tradição de família italiana, tutto in famiglia, um núcleo familiar que deve estar sempre junto, mesmo diante das adversidades que possam surgir ao longo da vida dos seus integrantes. 

Enquanto assistia ao filme, a todo tempo, veio-me à mente a história de “A Casa de Bernarda Alba“, uma peça teatral que vi há muitos anos e da qual nada me lembrava, mas mesmo assim o meu consciente criou uma conexão. Após ter deixado a sala de cinema, fui verificar os dados sobre esta peça, e então percebi que não foi por acaso que a minha memória conservou algo dela. Texto que a meu ver tem forte relação com “As  irmãs Macaluso“.

A Casa de Bernarda Alba” é a última obra teatral escrita por Federico Garcia Lorca, em 1936, dois meses antes de ser fuzilado em Granada/Espanha, aos 38 anos de idade, por ser comunista (além de ser igualmente perseguido por ser homossexual) e denunciar as atrocidades fascistas franquistas. A peça é dividida em três atos e narra a história de uma mãe autoritária que controla a vida das suas cinco filhas solteiras: Angústias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela. Um drama que expõe o poder de uma mulher-mãe sobre os corpos e a vida das suas cinco filhas. A matriarca Bernarda, após a morte do marido, impõe um luto de oito anos e submete as filhas à reclusão, dentro das paredes de uma velha casa. No plano da realidade, este parecia o costume de famílias espanholas da época e quem sabe também da Sicília/Itália e de outros países pelo mundo afora.

Em  “As  irmãs Macaluso“,  a irmã mais velha, impõe uma certa autoridade (de Mãe e Pai ) e busca controlar as acções e desejos das suas irmãs, seja antes ou depois da morte da mais nova. O que me leva a pensar que estas mulheres tiveram uma educação rigorosa e algumas delas tentam se libertar desta possível herança dos pais. 

Principalmente nas fases adulta e na velhice há muitos conflitos entre elas. Uma intensa desordem se instala quando tentam expressar sentimentos reprimidos, acabando por acontecer um enfrentamento de umas com as outras, no qual as suas fragilidades são expostas dentro de um apartamento em ruínas, assim como as suas emoções.

Kátia a única das irmãs que conseguiu “emancipar-se”, deixa a família de origem/o lar fraterno, quando encontra um homem com o qual se casa, iniciando uma nova vida e identidade. Entretanto, depara-se com o marido que a quer submissa e controla a sua vida; e para piorar, ela tem uma maternidade frustrada, infeliz.  

Maria sonhava em ser bailarina e na juventude demonstrava interesse afetivo por mulheres, na fase adulta consegue trabalho numa clínica que utiliza órgãos de animais para experiências científicas. Diante de imensa tristeza (por causa da morte da sua irmã mais nova); das frustrações que o seu corpo abriga e dos desejos não consumados, ela pára de se alimentar. E acaba por descobrir que está com cancro.

Já Pinuccia experimenta uma certa “libertação” e procura escapar das suas frustações através do sexo, todavia continua presa ao passado e dentro do velho e doloroso lar em que nasceu e viveu. 

Enquanto Lia, a mais idosa, que acaba por enlouquecer e passa as noites a escutar a irmã Pinuccia a fazer sexo com um suposto namorado (que nunca vemos). 

Enfim, entre elas há muitos embates morais e físicos, sobretudo, na fase da velhice, coisas que parecem terem ficado reprimidas por décadas e talvez tenham sido herdadas da criação dos pais que pode ter sido autoritária. 

Não custa lembrar que no filme e no plano da realidade, a velhice, de nós mulheres, é muitas vezes vista com um aspecto negativo socialmente, em especial, das mulheres que não contraíram matrimónio.  O casamento em meios familiares de pequenos recantos do mundo permanece como uma forma de emancipação das mulheres. A velhice feminina segue sendo estigmatizada e as mulheres idosas que não se casaram são colocadas à margem. Um exemplo das tais falhas da sociedade como menciona Emma Dante numas das suas falas.

Agora volto o meu olhar para os objetos de cena da casa das irmãs Macaluso, algo que nos salta aos olhos durante todo o filme. Filme que tem uma acurada direção de arte. Os objetos de cena são tudo o que sabemos do passado destas mulheres e dão à narrativa uma certa contextualização temporal de uma outra época: a mobília antiga, traços, coisas diversas e a herança de pessoas que ali coabitaram.  Mas eis que surge na tela uma cena com um telemóvel, nos dando a entender que o filme se passa na contemporaneidade e não em tempos demasiado longínquos.

Para além da mobília antiga e fotos em porta-retratos espalhados pela casa, pouco é dado a saber do passado das cinco irmãs.  Quem foram os seus pais e o que faziam? Teriam sido rigorosos na educação das filhas, assim como foi Bernarda Alba? Estariam as irmãs Macaluso acumulando o luto pela morte dos pais, somada a perda da morte da irmã mais nova?

O apartamento, a casa que acolhe e abriga as irmãs, é a locação principal do filme. A realizadora rodou poucas cenas externas, e percebo que isto tem um elo com os sentimentos das mulheres, que passam quase todo o tempo fílmico num espaço fechado, um ambiente cheio de memórias, um lugar que transporta e conserva o fardo de outras vidas, histórias de distintas gerações que por lá habitaram.

Dada a sua importância, gostava de sublinhar uns plongées em algumas cenas no interior da casa, cenas aliás pouco, mas primorosamente iluminadas. Tais tomadas intensificam a impotência das irmãs diante dos acontecimentos das suas vidas, elas estão atadas a um destino inevitável que as impossibilita sair do âmbito da casa e do luto, a viver o que está no exterior e realizar seus desejos.

Algo que me incomodou no filme foram as elipses; os bruscos saltos temporais entre as fases das mulheres (infância, juventude e velhice). Não que o cinema não faça isto, mas quiçá de um modo menos intenso e rápido como parece ser no teatro.

Outra questão que me intriga é a simbologia dos pombos, que é fonte de renda e convivem com as cinco mulheres. No senso comum, são aves que trazem a ideia de paz, cuidado, harmonia, esperança e liberdade, mas isto pouco se aplica no caso das personagens de Emma Dante. Por qual razão simbólica teria a realizadora usado os pombos para compor a história de “As irmãs Macaluso“?

As irmãs Macaluso” (2020) estreou no 77º Festival de Veneza, na competição pelo Leão de Ouro, e foi exibido na sessão de encerramento da Festa do Cinema Italiano e na abertura do Festival Olhares do Mediterrâneo 2021. Vale muito a pena ver o filme e conhecer mais sobre Emma Dante.

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
Jorge Pereira
as-irmas-macalusoO que vemos em "As  irmãs Macaluso" é a temporalidade da existência de cinco irmãs, a expressão dos seus afetos e a metamorfose sentimental e física dos seus corpos.