Quinta-feira, 18 Abril

Pénélope Mon Amour: uma viagem ao mundo de ‘Pélo’ com Claire Doyon

Há oito anos, durante uma viagem às estepes da Mongólia, Claire Doyon compôs um retrato luminoso da sua filha autista (“Pénélope”, 2012). Algumas das cenas desse filme, juntamente com novas imagens, acabaram por chegar a este novo “Pénélope Mon Amour”, um trabalho íntimo que traça a vida da sua filha, Pénélope (Pélo), diagnosticada com a síndrome de Rett, um distúrbio neurológico que ocorre quase exclusivamente em mulheres e que afeta o desenvolvimento após um período inicial de 6 meses de desenvolvimento normal.

Consequentemente, ao falar da sua filha, Doyon fala também de si mesma, como mãe e cineasta, além da própria sociedade, que olha para estes casos como anomalias na cultura da “normalização” em que vivemos. “Somos nós, sociedade, que temos um problema, e não aceitamos as pessoas diferentes”, disse-nos Doyon numa entrevista durante o Festival de Roterdão, onde o filme foi exibido depois de ter passado com sucesso no FidMarseille.

Em 2012 já tinha feito um documentário em torno da Pénélope. O que a levou agora a voltar a pegar novamente no tema e fazer este “Pénélope Mon Amour”, adicionando novas cenas?

Nunca parei de filmar e fiz curtas-metragens entre 2012 e este filme. Acima de tudo, este foi um processo de maturação muito longo. Fui acumulando muitas imagens ao longo dos anos, muitas cassetes. Decidi juntá-las e fazer um filme. Também notei que o meu olhar sobre o material mudou ao longo dos anos e quis também fazer qualquer coisa sobre esse novo olhar.

Mas tinha de alguma forma um guião ou foi tudo decidido na montagem?

Este é um projeto totalmente construído na montagem. Foi confrontado as imagens que escrevi o texto durante um ano. Esse texto nunca estava pronto como ponto de partida. Foi olhando para as imagens que fiz um trabalho minucioso de escolha das palavras para acompanhar essas imagens. Um trabalho muito íntimo. Nessa montagem, percebi também que as imagens pediam uma grande intimidade das palavras. De certa maneira quis construir uma personagem.

Claire Doyon

Essa questão da intimidade é importante e foi certamente um desafio. O que pode mostrar? O que não deve? E isto não apenas no seu lado, mas principalmente no da Pénélope. No caso dela, não havia propriamente um consentimento para utilização das imagens. Como trabalhou essa questão do ponto de vista ético?

Filmava-a e ela olhava para mim com um daqueles olhares para a câmara. Sempre senti uma relação dela com a câmara. A câmara era como um espaço entre nós. Sinto que ela também percebia que se transformava numa personagem. Por exemplo, uma vez num comboio, onde estava muita gente, nomeadamente homens de negócio, etc, peguei na câmara e senti que ela estava super feliz por eu a filmar. A câmara era uma forma de lhe dar uma outra imagem dela, que contrariava com aquela que as pessoas no comboio tinham dela. Houve momentos em que essas pessoas começaram a olhar para a Pénélope daquela maneira característica, de alguém com uma deficiência.

Quanto ao expor a intimidade, fui também influenciada pela própria Pénélope. No início, nas filmagens, surgiam outros autistas que mostravam a sua percepção do mundo. Isso para mim era um elemento exterior. Queria mostrar o que ela sentia.

Além disso, queria que o filme fosse político e por isso fui buscar palavras muito políticas. Eu, a minha produtora e o montador sempre dissemos que quanto mais íntimo o filme fosse, mais político seria.

Sobre esse olhar político, pretende mudar a perceção do mundo perante o autismo, e especialmente sobre as pessoas com a síndrome de Rett?  

Sim, de certa forma desejo que olhem para eles de outra forma. Somos nós, sociedade, que temos um problema, não as pessoas que sofrem disso. Na nossa sociedade é preciso ser extremamente “normal” para viver no ambiente escolar e profissional padronizado. No caso da Penélope, ela tem muitas particularidades que a afastam disso. Queria que olhassem para ela neste filme como se fosse uma personagem, uma heroína, e não como alguém doente. Sinceramente, nós é que temos um problema. Não aceitamos as pessoas diferentes. Vivemos num quadro de normalização, de “gente como nós“, mas temos de ver que há outras pessoas que vivem num quadro totalmente diferente.

Trabalha também numa associação, a MAIA [um instituto experimental, com sede em Paris, criado em 2007, e que atualmente acolhe 24 crianças e adolescentes com autismo]. Como gere a sua vida? O que é o cinema para si?

O cinema permite-me ver as coisas, a vida, de forma diferente. Ajuda-me a não ser absorvida pelas situações do quotidiano. Coloca-me um pouco ao lado de tudo isso. Isso permite-me ver as coisas de um ponto de vista cómico, mesmo que o tema não o seja. Neste momento quero escrever uma comédia. Na MAIA vivo sistematicamente situações que me confrontam com o mundo do trabalho. Por exemplo, estou a trabalhar em criar uma pequena extensão para os adultos e a minha forma de viver e encarar isso é ter o cinema ao meu lado. O cinema ajuda-me também a olhar para o mundo com uma certa distância, de sentir uma certa comédia social nisso. No caso deste filme, não podíamos sentir isso, pois a Penélope não conhece nem consegue seguir esses códigos. Vivemos num mundo muito codificado com formas de como devemos falar e fazer as coisas. 

E o que pensa da forma como o cinema retrata a questão do autismo? Hoje em dia, temos muitos filmes e séries sobre isso, com diferentes perspectivas em jogo. Acha que as coisas estão a mudar no olhar do audiovisual sobre isso?

Para mim é incrível tudo o que se está a passar. E sempre num registo de evolução permanente. Na Netflix, por exemplo, hoje em dia há séries sobre o autismo. É como se tivesse existido um #MeToo da diferença, uma emancipação do olhar sobre o tema. Creio que é maravilhoso.

E o que segue?

Estou a escrever uma comédia a partir de tudo o que vivo. Depois das lágrimas, é preciso agora rir. 

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