A problemática do assédio e violência sexual afeta a população feminina em todo o mundo, mas no Egipto chegou mais ao conhecimento do público ocidental depois do caso que envolveu a jornalista da CBS, Lara Logan, a 11 de setembro de 2011, enquanto cobria cobria as celebrações na Praça Tahrir após a renúncia de Hosni Mubarak. Ela não foi o único caso e muito menos o último. Dois anos passaram e nas celebrações da revolução, novamente na mesma praça, uma amiga da cineasta palestiniana Samaher Alqadi foi violada, sendo registado o momento à distância por câmaras de filmar.

Nasceu aí um movimento de revolta nas mulheres do Cairo, que de faca ou câmara em punho invadiram as ruas, reivindicando segurança, respeito e o fim da cultura machista que trata os seus corpos como propriedades. Foi neste período também que Samaher Alqadi começou a desenvolver este seu “As I Want”, um documentário que entre a militância feminista e o ensaio pessoal sobre a sua vida chegou finalmente à conclusão, estreando mundialmente no Festival de Berlim na secção Encounters.

Muita coisa aconteceu desde que as filmagens de “As I Want” começaram, entre elas a morte da mãe da realizadora, mas também uma gravidez, que é apresentada no filme no seu estado natural, orgânico e belo que rompe frontalmente com o tabu da exposição do corpo feminino que persiste no país. Esse mesmo tabu, que leva à catalogação da mulher como “má rés” numa cultura da “vergonha” e de recurso ao recato, é aqui confrontado pela realizadora numa visita a um parque infantil, onde crianças e algumas mães debatem com ela a condição feminina, mas também o facto de Samaher ter as pernas expostas.

Este é apenas um dos momentos poderosos filmados nas ruas do Cairo, onde se incluem ainda alguns instantes em que ela ouve vários piropos incómodos e sofre outras formas de assédio, confrontando diretamente os perpetradores de câmara na mão. E num dos momentos mais impressionantes de todo o seu projeto, explica ao seu filho pequeno porque reagiu violentamente quando foi apalpada. “Mas eu posso tocar-te mamã?”, pergunta o pequeno, tendo como resposta uma explicação didática de tudo o que estava em causa.

É inegável que depois do surgimento do movimento #MeToo e #Time’s Up o cinema global tem seguindo histórias de emancipação e de lutas contra o patriarcado, com ou sem vinganças pelo meio. E isso vê-se em produtos mais massificados para audiências globais, como “Promising Young Woman” e “The Assistant”, ou objetos de menor exposição territorial como este “As I Want”, os tunisinos “Antidepressivo Árabe”, “Le Rêve de Noura” e “Black Medusa”, o norte-americano “Mayday”, e até os egípcios “Curfew” e “Lift Like a Girl”. E se voltarmos alguns anos atrás ao Egipto, já Mohamed Diab, realizador que brevemente até vai trabalhar para a Marvel, assinou um poderoso filme sobre o assédio sexual (“678“, 2011), contando a história de três mulheres de classes sociais diferentes que são assediadas publicamente. “As I Want” complementa este lote com coragem, determinação e qualidade, sendo por si só um ato de resistência, tanto local como universal.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
as-i-want-de-faca-ou-camara-em-punho-a-revolta-contra-o-machismoUm ato de resistência local, mas também universal.