Sábado, 18 Maio

Confrontar um tabu e quebrar o silêncio: viagem a “Curfew” com Amir Ramses

"Curfew" teve a sua estreia mundial no Festival do Cairo

Aos 41 anos, Amir Ramses é um dos nomes mais falados na indústria do mundo árabe. Não só é um realizador com créditos firmados no Egito, como é o diretor artístico de um dos mais badalados eventos do Médio Oriente: o El Gouna Film Festival.

Assistente de realização do maior nome do cinema Egípcio, Youssef Chahine, Amir começou a caminhar pelos seus próprios pés em 2006, conseguindo sucessos nas bilheteiras e assinando – igualmente – documentários que deram que falar, como “Jews of Egypt“ (2013). Depois de “Cairo Time” (2014) e “Khanat el-Yak”, o cineasta apresentou no consagrado Festival do Cairo, na sua competição internacional, o seu novo projeto: “Curfew”. Um nome interessante para os dias que correm, onde novos recolheres obrigatórios foram impostos para travar a epidemia Covid-19.

No drama – selecionado pelo país na corrida ao Oscar de melhor filme internacional – estamos em 2013, período de instabilidade. O recolher obrigatório é aplicado durante meses e a circulação noturna é bastante restrita. É com esse pano de fundo que uma mulher, detida durante 20 anos por assassinar o marido, reencontra a filha. O ambiente entre as duas é de tensão, mas uma emergência médica vai obrigar ambas a colaborarem para chegar a um hospital sem serem travadas pelas forças da lei.

Foi com toda a humildade que Amir Ramses se sentou connosco numa mesa do Hotel Marriott, no bairro de Zamalek, na capital do Egito, e falou um pouco do seu “Curfew” e da sua carreira.

Como é que a ideia para este filme começou a germinar?

Foi um longo processo. Diria que há duas histórias no filme: uma de incesto e abuso sexual, e outra sobre uma relação humana, entre mãe e filha. Duas pessoas que não estão preparadas para confrontar-se, mas são obrigadas a fazê-lo devido a um “recolher obrigatório que as força a estarem juntas. 

Tudo começou em 2013, quando passei pelo recolher obrigatório. Foi uma sensação muito claustrofóbica. Queria passar isso um dia para filme. Foi então que em 2017 surgiram muitos casos na imprensa – não iguais ao retratado no filme – sobre situações de incesto e abuso sexual, que duravam há anos e permaneciam ocultos. O que me chocou mais não foi o crime em si, que todos concordamos que existia, mas o silêncio em torno disso. Havia sempre alguém da família que sabia. É como se as pessoas sentissem que só era um crime quando em causa estava um assassinato, ou se houvesse uma tentativa de aborto resultante desses atos. Essa conspiração social mexeu comigo e quis fazer um filme sobre isso. Quando as duas histórias fizeram o clique, decidi avançar com elas e combiná-las nestes “Curfew”.

Um dos elementos interessantes no seu filme é que a vítima não tem recordação dos atos, como se ela mesmo tivesse feito um “recolher obrigatório” desse trauma na sua mente. Alguma dessas histórias reais inspirou-o mais?

Não há nenhuma história real por trás do filme, mas várias. Li muitos testemunhos e há muitos casos até aos 10, 12 anos, em que as vítimas não têm memória dos abusos, até que algo despoleta essas recordações, às vezes quando já têm 20 ou 30 anos. A personagem da Layla (Amina Khalil) não está relacionada a nenhum caso em específico, mas a vários. Olhando para a Layla, ela não se lembra, mas sentimos que há algo nela de estranho, naquela ligação ao pai.

“Curfew”

Sim, até o próprio marido pressente isso. Há também uma personagem mais velha que diz mesmo que sabe o que passou…

Exato

Este é um tema tabu. Foi complicado abordar esta temática no Egito?

Foi chocante para muita gente, mas não teve qualquer problema com a censura, até porque as cenas não são explícitas. Obviamente, também não queria que fossem. Por isso mesmo, ainda na fase de construção do guião, decidi que nunca veríamos o pai. Queria que ele fosse um objeto na frame, mas sem o mostrar. 

Por isso não, não tive problemas com censura, mas muita gente questionou-me porque iria abordar este tema. Quando começamos a falar das coisas é um primeiro passo para quebrar aquele silêncio. Isto acontece dentro das famílias e silencia-se pois seria um grande escândalo.

O realismo faz parte de forma bem vincada no seu filme. Foi algo que foi buscar ao Chahine, com quem trabalhou como assistente? Ele foi o modelo para a sua definição como cineasta?

Sim, definitivamente. Existe até um claro tributo a ele no filme através da personagem de Yahya (referência a “An Egyptian Story”, de 1982). Há uma verdadeira influência, particularmente no uso da música, que eu tenho consciência que é demasiado melodramática para as audiências europeias. Há muitas coisas que o cinema de Chahine influenciou-me, em particular como combina a mise-en-scéne com a música, como os diálogos são articulados, etc. Visualmente não, se pensarmos neste filme, as câmaras a tremerem, as personagens encerradas na frame, não tem nada a ver com ele, e acho que Chahine não iria gostar (risos). Foi assim que visualizei o filme desde o início, esteticamente falando.

E trabalhou com o Chahine…

Sim, cinco anos. 

Como é que entrou no mundo do cinema?

Acho que queria ser realizador desde que tinha 10 anos. Estava a ver o “Alexandria: Again and Forever” (1989) do Chahine. Fui com o meu pai e o filme era sobre um realizador, a sua interacção com os atores, as suas dores e fantasmas.  Algo tocou-me sobre aquele mundo. Não sabia exatamente o que um realizador fazia, mas queria fazer o mesmo que o Chahine. Ele foi o primeiro a fazer o clique em mim. Depois fui para a escola de cinema quando tinha 16 anos, terminei passados 4 anos e comecei aos 20 como assistente de realização.

Também trabalha no documentário. Esse formato ajuda-o nas obras de ficção que assina?

Na verdade, não. Fiz três filmes de ficção. O terceiro, uma comédia, foi um grande sucesso de bilheteiras, e só depois comecei a fazer documentários, o “Jews of Egypt”. Era um assunto que há muitos anos desejava fazer, mas fui adiando. Tinha bastante medo, pois a minha comédia tornou-se um sucesso do box-office e todos queriam que fizesse outra a seguir.

Sentiu muita pressão?

Sim. Normalmente, no Egito, tu contactas o produtor para tentar fazer um filme, mas depois desse sucesso os produtores ligavam-me a dizer que queriam trabalhar comigo, para eu lhes propor um guião. Eu propunha, mas eles lamentavam não ser outra comédia como a anterior. Decidi então ir para o extremo oposto e fiz o “Jews in Egypt”. 

E ainda mantém a ambição de fazer documentários?

Sim, e até curtas-metragens quando sentir que as desejo. Não vejo as coisas como um “curso”, em que fazemos curtas, depois documentários e finalmente longas-metragens de ficção. 

Certo, mas normalmente os realizadores deixam de fazer curtas a partir de certo ponto…

Sim, mas veja: na literatura, o Gabriel Garcia Marquez escrevia novelas e também contos. A meu ver, existe a história e depois existe o formato para essa história. Se quiser fazer uma história que só funciona como curta, então faço-a. Ou um documentário, ou uma longa-metragem de ficção. 

No seu trabalho também encontra influências na literatura e outras artes além cinema? É alguém que lê, vai a exposições, museus, etc? 

Sim, sou um nerd (risos). E um “geek” (risos). E até experimentei escrever uma novela uma vez, que foi publicada em 2010. Odeio-a, não sei porque foi publicada. Escrevi e um amigo meu disse que a devia publicar. 

Elham Shaheen em “Curfew”

Regressando ao seu filme, houve um casting? Escreveu já a pensar em alguns atores?

Acho que desde que terminei o primeiro esboço tinha os atores na minha mente. Achava que ninguém iria ter coragem de fazer o papel da Layla. A maioria dos atores no Egito está mais preocupado com a aparência. Na maquilhagem, nos cabelos. São todos atores/influencers agarrados ao Instagram, que têm de ter likes e não necessariamente fazer um bom papel. A Elham [Shaheen] não é assim. É corajosa e já fez papéis fora da caixa. Eu queria-a para o papel da mãe. A Amina [Khalil] igualmente, e ja tinha trabalhado com ela numa pequena cooperação. Até as pessoas com pequenos papéis, os cameos, etc. Como o Khairy Beshara, que faz o papel do tipo na loja. É um realizador aclamado no Egito. Quando estava a escrever a personagem, que acho provocante, pensei logo em pedir ao Khairy para fazê-lo. O único que chegou mais tarde foi o Kamel El Basha. Foi só depois de ver o “The Insult” no El Gouna. Um ano depois, esteve no júri do festival e conheci-o pessoalmente. Senti que seria brilhante para essa personagem.

Falando no El Gouna. É o diretor artístico do festival, mas estreou o seu filme no Festival do Cairo. Sei que não existe rivalidade, ambos podem coexistir, mas é importante para si estrear o “Curfew” aqui? Tem uma relação especial com este festival?  

Sim, tenho uma ligação especial ao Festival do Cairo, mas estrear o filme no El Gouna e ser o seu diretor artístico seria quase como incesto (risos). Sou o diretor artístico, responsável pelo programa. “Ok. Vi o meu filme. É o melhor do ano. Vou estreá-lo no meu festival “(risos). Não! Estava completamente fora de questão. Na verdade, o meu produtor, os seus filmes têm estado sempre no El Gouna. Fui ter com ele, com este guião e disse-lhe: “este vai ser o teu primeiro filme que não vai estar no El Gouna” (risos). Estrear lá o “Curfew” seria totalmente inapropriado.

Para além disso, o meu primeiro filme estreou na competição árabe do Festival do Cairo. De uma maneira ou de outra, este festival foi o meu santuário nos anos de estudo, sempre a correr para os visionamentos. Foi aqui que vi os irmãos Taviani, quando vieram ao Egipto.

Mudando de tema, como é que esta pandemia afetou-o, não apenas na vertente dos festivais, mas nas regras do cinema atualmente, como na produção? A pandemia afetou-o nesse sentido?

Sim, em tantos níveis. Por exemplo, os cinemas reabriram no Cairo, mas apenas a 50%. Esse valor em receitas cobre apenas o orçamento de uma película média. Talvez um pequeno filme possa aparecer. Cinco ou seis das maiores produções ninguém sabe quando poderão ser lançadas. Tal como no resto do mundo, há novos formatos emergentes. As plataformas de streaming estão cada vez mais ativas, comprando os filmes diretamente. Sim, muito mudou. Não sei bem para onde vamos. Lentamente, os filmes recomeçam a ser produzidos, pois isto é um negócio. É a tua vida e é o que fazes. Felizmente não somos como Hollywood, que faz um filme por 200 milhões de dólares, por isso podemos arriscar, o que é bom.

Mas o que acha dos desafios que os cinemas têm em frente com estas plataformas? Por exemplo, a Warner Bros. vai lançar os seus filmes nos cinemas e streaming… Tem uma opinião sobre esse tema? Acha que o cinema está realmente em perigo?

Não. Quando a TV apareceu, toda a gente disse que o cinema morreria. Existe uma vertente social quando vamos ao cinema que vai continuar lá. Veja um filme da Marvel num ecrã pequeno, existe sempre o glamour do grande ecrã: o 3D, o som. E mesmo pensando de forma positiva em torno destas plataformas, já que dão a chance a filmes que hoje em dia já não estão a ser produzidos. No Egipto, nos últimos três anos, temos grandes produções na casa dos 100 milhões de libras egípcias – filmes de ação com perseguições automóveis, horror etc –  e filmes de autor. Houve uma desaparecimento das produções médias como o meu “Curfew”. Não conseguimos produzir este género de filmes e por isso, mesmo alguns cineastas egípcios aclamados, estão há anos a tentar concretizar os seus projetos. Penso que estas plataformas podem trazer novamente vida para este género de produções.

Falando da Marvel, concorda com o Scorsese? Filmes da Marvel não são cinema?

Não são certamente o meu cinema, mas não posso dizer que não são cinema. Acho que nunca completei um visionamento de um filme da Marvel, com exceção do “Dr. Strange“, pois adoro o Benedict Cumberbatch. Há algo nestes filmes que não faz o clique em mim. No que toca aos super-heróis ainda estou muito agarrado aos filmes da minha infância, como os Batman do Tim Burton – que foram os últimos filmes Batman que gostei. 

Não gostou dos do Christopher Nolan?

Não me agarraram. Bem, talvez o “Batman Begins”, mas depois disso senti que tentaram dar uma estética do dia a dia, do quotidiano, no universo dos super-heróis. Achei isso demasiado… Até começaram a fazer as Tartarugas Ninja, no remake, de forma tão real. Perdeu-se o charme do super-herói, dos comics, daquilo que eram para mim. 

Youssef Chahine é uma clara influência no cinema de Amir Ramses

Mas repare que aprecio a existência deste tipo de filmes. Não são é aquilo que procurava no amor ao cinema. Procurava Chahine, Fellini, os Taviani, Krzysztof Kieślowski, que também tem um tributo no filme. Acho que o cinema norte-americano em geral, além do Woody Allen e o Jim Jarmusch, não me influenciou ou tocou. 

E essa visão artística, usa-a igualmente para o festival que dirige?

Não necessariamente. Tento não ser fascista nas nossas decisões. Tento criar diversidade e atrair uma vasta audiência. Vamos dizer que para as grandes produções norte-americanas é sempre complicado os festivais, especialmente no Médio Oriente, pois como mercado não somos importantes para eles. Para ter um grande filme dos maiores estúdios no teu festival, temos de alterar a data do festival para coincidir com o lançamento desses filmes. 

Por exemplo, sem mencionar nomes, era suposto termos um grande filme americano para a nossa noite de abertura. Um filme que era suposto chegar ao mercado do Médio Oriente uma semana depois. Depois foi adiado e disseram-nos que ia estrear lá para o natal. Conversamos e propusemos exibir o filme na mesma, até porque um dos atores estava confirmado no festival. Mandaram-nos uns gráficos de eventuais receitas com 50, 60 milhões dólares e o Médio Oriente representava apenas 400 mil dólares. A pergunta deles era: “porque vamos arriscar exibir o filme agora, dois ou três meses antes da sua estreia comercial?”. Não sou contra os blockbusters e grandes produções para as massas, mas é difícil gerir a sua seleção.

Tem um novo projeto cinematográfico a caminho, uma comédia. Pode falar um pouco desse filme?

Chama-se “What Samira Hides (Ma Takhfih Samira El Ai’aa) e é sobre influencers e trends sociais. O filme desenrola-se numa área muito popular do Cairo e segue um motorista cuja vida leva uma grande volta quando ele se torna um influencer depois da divulgação online de um vídeo sexual com uma mulher desconhecida que toda a gente quer saber quem é. É sobre a ascensão e queda de uma celebridade.

E já está escrito?

Já temos um bom primeiro esboço, que está a ser retrabalhado. Esta ideia foi-me proposta pelo Haitham Dabbour, jovem argumentista egipcio que escreveu  o guião do  “Photocopy” (2017) e o “Gunshot” (2018). Gostei do que ele propôs, do conceito.

E planeia filmá-lo no próximo ano?

Espero que sim. Espero começar o casting depois do Festival do Cairo terminar. Não tenho a certeza se o consigo filmar antes do Festival El Gouna, no próximo ano, abrir.

Para terminar, onde se vê daqui a 10 anos? Tem algum projeto de sonho?

Bem, primeiro, para ser honesto, não me vejo ainda a fazer festivais (risos). Fazer um filme a cada quatro ou cinco anos não é bem a minha coisa . Não sei quanto tempo mais vou ser o Clark Kent de dia e o Super-Homem à noite. (risos) 

Tenho uma série de projetos, mas são ideias que não se aplicam para o cinema egipcio: os orçamentos são muito elevados, devido à reconstrução histórica. Ambos são adaptações de obras literárias: o “The Man in the White Sharkskin Suit”, da Lucette Lagnado – uma escritora judia que nasceu no Egito, mas teve que abandonar o país com os seus pais quando era nova. Ela escreveu uma obra baseada no diário do pai e já surgia no meu documentário “Jews of Egypt”. Adoro o livro e um dia sonho adaptá-lo.

O outro é do mais aclamado livro dos anos 50 no Egito: “Beer in the Snooker Club”, do Waguih Ghali, um autor que escreveu apenas este livro e tornou-se um fenómeno. Na época houve imensos mistérios e enigmas sobre ele, sobre a sua vida. Cometeu suicídio depois do escrever. São filmes dos anos 50, grandes projetos, muito ambiciosos. Creio que não se encaixam dentro do formato de produção do cinema egípcio

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