A primeira cena de “Feast“, com sensivelmente 10 minutos, num registo observacional, dá o mote: uma mulher, que presumimos ser uma agente de autoridade, coloca em cima de uma mesa os restos de uma noite que terminou em crime. De toalhas a dvds, cds, latas de cerveja, restos de várias drogas e alguns brinquedos sexuais, tudo se amontoa, com alguma organização, mas a partir desse retrato em movimento das marcas e restos de uma noite trágica, não somos ainda capazes de descrever o que terá acontecido.

Posteriormente, entramos na dramatização de um momento que junta três homens numa sala artificialmente mobilada, um não-lugar onde as palavras que debitam ganham contornos surreais quando quase parecem apresentar um crime como um registo de poesia (negra) da vida. Poderá a morte ser um objeto artístico, como já questionava Lars Von Trier em A Casa de Jack? E poderá ser uma contaminação criminosa um processo de socialização, da criação de uma conexão através da instalação do vírus, não diferente dos vampiros (e até zombies), que transformam aqueles que morderam noutros da sua mesma espécie, criando aqui um vínculo social? “Feast” entra por estas questões a partir das respostas dos entrevistados, analisando ainda o funcionamento dos vírus, a sua filosofia, visitando-se mesmo experiências laboratoriais com flores, onde uma bióloga leva-nos ao modus operandi de atuação dos agentes infecciosos.

Tudo isto pode parecer uma via tão presunçosa como irreverente para o realizador Tim Leyendekker mostrar um caso de polícia que abalou a Holanda, mais propriamente Groningen e a sua comunidade homossexual, onde, em festas queer regadas a sexo, álcool e drogas, os homens eram propositadamente drogados e injetados com sangue contaminado com o HIV.

Longe de qualquer documentário padrão, que se resume a reencenações, imagens de arquivo ou “cabeças falantes” com uma veia exploratória de entretenimento que nunca se cansa de fait-divers e de doses generosas de manipulação emocional, o realizador Tim Leyendekker – já com larga experiência em curtas, algumas das quais estreadas em Roterdão – faz uma visita cuidada ao corpo e mente queer ferido pelo trauma e crime, mas também embarca em questões filosóficas, existências e sociológicas, onde referências a Platão são introduzidas sem artificialismos. 

Mas ao contrário de outro filme na competição de Roterdão, Agata Mousse, onde se partia de um corpo queer debilitado pela descoberta de uma doença, para se transitar para um ensaio absorvido por um pretensiosismo pseudo-intelectual que arrogantemente disparava referências e formas estéticas para crítico de arte morder o isco (De Méliès, a Foucault, passando por Chris Marker, entre outros), Tim Leyendekker mostra coesão na sua construção por vinhetas díspares na forma, estrutura e resultados, fazendo da sua docuficção um caso de estudo e até de terapia, mesmo que na verdade não encontremos respostas concretas. Mas, pensando bem, haveria alguma resposta que nos deixasse satisfeitos? Creio que não, e o realizador ao manter-se longe da exploração de um caso criminal perfeito para encher tablóides e plataformas de streaming, e também por optar por não entrar no ensaio egocêntrico que se diz relevante pela dispersão e aglutinamento da forma sobre os objetos e temas, Leyendekker mostra maturidade e balanço para saber navegar por um tema corriqueiro – um caso de polícia – e levá-lo além disso sem necessidade de fazer o culto ao “eu”.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
feast-docuficcao-visita-caso-criminal-que-chocou-a-holandaO realizador manteve-se longe da exploração de um caso criminal perfeito para encher tablóides e plataformas de streaming, mas fugiu igualmente do ensaio egocêntrico onde o autor se sobrepõe ao objeto ou tema