A ave constrói o ninho; a aranha, a teia; o homem, a amizade”. É com esta frase do poeta inglês William Blake que começa o novo filme de Kelly Reichardt.

Baseado no romance “The Half-Life” de Jonathan Raymond, “First Cow” é um drama polvilhado com toques minimalistas de comédia, recheado de ressonância poética de outros ingredientes que Reichardt nos faz descobrir, para melhor saborear.

Filme lento, que rumina o tempo de modo cativante, conta uma história de amizade entre dois homens outrora sós. Com personalidades sonhadoras e sensíveis, o cozinheiro Cookie (John Magaro) e o imigrante chinês King-Lu (Orion Lee) são espíritos deambulantes num velho oeste em ebulição.

Ao se reencontrarem no Fort Tillicum em Oregon, já depois de Cookie ter ajudado King-Lu a esconder-se de um grupo de russos que o queriam matar, irão partilhar uma barraca no bosque e pôr em marcha um plano de negócio fofo e “oleoso”, que irá fermentar através do melhor dos seus passados.

Os dois homens unem-se para roubar o leite da primeira vaca do território e vender bolos no mercado, crentes que um dia irão abrir um hotel ou uma padaria nas terras de São Francisco.

Mas neste microcosmos de empreendedorismo americano, terra de oportunidades para locais e imigrantes onde Reichardt e Raymond encetam uma alegoria económica, histórica e política, explanando como as iniciativas mais simples sempre descobriram o engenho para ludibriar o poder capitalista…não esquecem que a lei da bala sempre imperou e a violência não deixou de pairar sobre cada centelha de prosperidade financeira.

Neste caso, vem do Chief Factor (Toby Jones), o inglês abastado, senhor-todo-poderoso da região para quem Cookie e King-Lu preparam um clafoutis divinal… com o leite roubado da sua própria vaca.

Apesar da aura sombria permanecer connosco desde o início do filme, o que vemos desenrolar em First Cow é na verdade algo mais luminoso e ternurento. Com o recurso a uma cinematografia em 4:3, que enquadra rostos e floresta da mesma forma, oprimindo o espaço e concentrando os sentidos, Reichardt mantém o foco do filme no florescer da amizade entre Cookie e King-Lu.

As pequenas gentilezas entre os dois, os sonhos que amadurecem durante a partilha nas rotinas domésticas, as conversas mais íntimas à luz da fogueira e até o acto criminoso, trazem uma simpatia ou mesmo um amor entre os dois, que eles transpõem para os homens da comunidade que os rodeia.

Porque o leite que eles roubam e cozinham nos concorridos bolos, é o âmago da saudade, o conforto da terra-natal e o sabor da civilização.

É algo distinto que traz propósito e estatuto na última fronteira da terra, onde todos procuram sentido na sua existência e por instantes encontram-no no paladar. Cookie e King-Lu usam isso a seu favor, pois para a sua vida, já se têm um ao outro.

Filme do ano em várias listas de críticos e jornalistas, “First Cow” é um conto agridoce que nos deixa em estado de meditação, cogitando sobre a natureza predatória do capitalismo, as guerras de classe e a marginalização do indivíduo, com uma expressão embevecida no rosto.

Pontuação Geral
Daniel Antero
Guilherme F. Alcobia
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