Se há um cineasta que era fascinado pela vida e seguiu dedicando ao cinema, mesmo com uma doença incurável que se instalou no corpo em 1984, quando tinha 38 anos, foi o argentino Héctor Eduardo Babenco, realizador naturalizado brasileiro. Um coração que não queria parar. O filme “Babenco, alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou” (2019) documenta a vida e o cinema deste realizador, para quem fazer cinema era uma maneira de estar vivo. Este filme é um primoroso retrato íntimo criado por Bárbara Paz, a sua primeira experiência como realizadora, ela que também é cinéfila, atriz e apresentadora de TV.

Babenco dedicou-se ao cinema durante 35 anos, dirigindo atores profissionais ou não, filmando em diferentes países. Deixou a Argentina, a sua terra natal para trilhar outras veredas, mudou-se para o Brasil onde estreou a sua primeira longa-metragem aos 29 anos, “O rei da noite“, 1975. Depois fez mais cerca de 10 longas-metragens, dentre elas as instigantes: ” Pixote – a lei do mais fraco,”, 1981; “O beijo da mulher aranha/Kiss of the spider woman“, 1985 protagonizado por William Hurt, filme que o internacionaliza (época em que Babenco descobre ter uma doença incurável); “Brincando nos campos do Senhor“, 1990, filme rodado na Amazónia com Tom Waits como uma das personagens; “O coração iluminado“, 1998 (roteiro partilhado com o escritor argentino Ricardo Piglia); “Carandiru“, 2004 (sobre a vida dentro do que era a maior cadeia da América latina); “O passado“, 2007, inspirado no livro de mesmo nome do autor Alan Pauls; e o filme autobiográfico “Meu amigo hindu“, 2015, protagonizado por Willem Dafoe e Bárbara Paz – inspirado no processo do transplante de medula óssea a que Babenco foi submetido, sendo o último filme realizado por ele. Bebenco é um realizador cuja cinematografia tem muito de si, de questões sociais e dramas humanos e cujas personagens, na sua maioria, são pessoas marginalizadas socialmente. Um cineasta que se sentia pouco valorizado tanto no Brasil quanto na Argentina.


No documentário “Babenco, alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou” (2019), dirigido por Bárbara, relata o cineasta: “Eu já vivi minha morte, agora só falta fazer um filme sobre ela”. E então, ela se lança de corpo e alma neste projeto-desejo do seu companheiro de vida. Tendo iniciado as filmagens do processo do cancro que havia se instalado no corpo de Babenco, num hospital de Paris em 2010, acompanhou-o até 2016.

No início do filme, vemos uma imagem fora de foco e ouvimos o som de gotas (de soro?) caindo como numa ampulheta, em paralelo ao diálogo de Babenco em off com Bárbara, e ele questiona: “Como se faz um filme? Como nasce um filme? Ele pode nascer a partir de uma sentença de morte dada por um médico, dizendo ‘você vai morrer em 3 meses’ e a partir daí você constrói uma história”. E foi o que a Bárbara criativamente e cuidadosamente fez.

A realizadora imprime o seu olhar, cria os planos e os enquadramentos compondo uma cartografia afetiva e fílmica. O realizador argentino-brasileiro entrega o seu cinema e a sua vida, para serem transformados num filme. Entrega à mulher, a quem amou e por quem foi amado, sendo ele o protagonista da sua própria história. Bárbara documenta de forma cinematográfica o gesto deste homem que queria viver e não mais podia. Na tela, num lirismo apurado, revemos memórias antigas e recentes, fabulações, sofrimento, passado e presente, camadas de tempo e afetos. Toda uma poética irrompe na textura das imagens filmadas em preto e branco, acrescidas as imagens de arquivo familiar de Babenco, desde a sua juventude e cenas dos seus filmes, acompanhadas pela voz off dele narrando momentos importantes da sua existência e da sua despedida. Sem se entregar à morte, resistiu diante da câmera sem lamento. Tudo muito bem costurado por Bárbara, do roteiro à montagem. Os dois estão no filme (imagens a seguir), contudo, ouvimos as suas vozes mais do que os vemos.

Conhecendo a história do cinema, foi inevitável não aproximar a narrativa da vida de Babenco da história de outro homem que também dedicou sua vida ao cinema. O cineasta Nicholas Ray, responsável, entre outros filmes, de “Rebel Without a Cause” (Fúria de Viverpt ; Juventude Transviadabr , 1955) e “Johnny Guitar” (1954). Ele, em “Lightning Over Water” (Nick’s Movie – Um Acto de Amorpt; Um filme para Nickbr), filmado em conjunto com Wim Wenders, documentam a sua própria morte. O realizador alemão vai a Nova York em abril de 1979, porque Ray estava muito doente e já tinha sido operado três vezes a um cancro que acabou causando o fim da sua vida, aos 67 anos. No início, Wenders hesitara em filmar com temor de expor na tela o sofrimento do amigo, porém, percebe que Ray queria muito deixar registado em filme a sua trajetória no cinema e na vida, e então, os dois revisitam filmes que são caros a Ray, os filmes do próprio Ray entrelaçando com imagens da sua vida. O protagonista, assim como Babenco, queria deixar registado o seu falecimento físico, conservando no cinema os seus últimos e dolorosos dias de vida e a sua longa dedicação à esta arte.

Outra aproximação que faço é com a vida e obra do filósofo francês Gilles Deleuze. Pouco antes de morrer, ele concedeu uma série de entrevistas à jornalista Claire Parnet, o que resultou no nomeado “O abecedário de Gilles Deleuze“, uma série de vídeos divididos em blocos com cerca de 8 horas no total, filmado por Pierre-André Boutang nos anos 1988-1989 e finalizado em 1994 (disponível aqui). Letra por letra do alfabeto, Deleuze vai contando como viveu e pensou a filosofia em relação a tantas artes e à própria vida. Antes de iniciar as entrevistas, ele fez um acordo com Parnet: o material resultante do diálogo entre eles poderia ser divulgado somente após a sua morte, morte que veio a acontecer em novembro de 1995, aos 70 anos de idade, deixando documentada a sua resistente passagem pela terra. Entretanto, acabou por permitir e foi exibido entre o fim de 1994 e o início de 1995, no Canal/TV francês ARTE. No momento que antecede as entrevistas, o filósofo, vendo-se condenado à morte, confessa a Claire que se sentia reduzido a um ‘estado de puro arquivo’, pois sabia que em breve iria morrer, pois há anos sofria de problemas respiratórios e tinha um cancro.

Gilles Deleuze e Fanny (a sua esposa). Foto por Felix Guattari, na sua casa emSologne/France. Julho de 1969. Imagem de Arquivo do Centre Pompidou.

Bárbara, assim como Claire Parnet, registou o estado de quase-morte, de quase-arquivo de Babenco, do cessar da sua energia vital causada por um cancro que o perturbou por 32 anos. O realizador insistiu muito com a vida no parco tempo que lhe restava e se sentia um homem-fénix, tentou ressurgir das cinzas até o dia da sua partida.

Vendo o filme e pensando sobre a morte, lembrei-me de um poema do brasileiro Antônio Cícero que parece traduzir bem a passagem de Babenco pela terra: “A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo, mas porque como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão, mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele via a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória”.

Outro homem que sabia que iria morrer, e que desejo elucidar, é o filósofo Sócrates (469–399 a.C.). Ele teve a sua morte documentada de vários modos e por diferentes pessoas. Destaco um livro de Platão e uma pintura que conserva e enquadra a tragicidade final da vida deste filósofo (imagem a seguir). Acusado pelo governo de corromper a mente dos jovens atenienses com o seu pensamento filosófico, Sócrates foi obrigado a beber cicuta. Ele tinha a opção de ir para o exílio e desistir da sua vocação filosófica ou ser compelido à morte – “escolheu” a morte. Depois de condenado pelos juízes, o filósofo ficou 30 dias na prisão à espera de ser morto, pois naquela época havia uma lei que vedava as execuções durante a viagem de retorno de um navio sagrado à Delos. Este navio todos os anos ia à ilha natal de Apolo para celebrar a ajuda que o Deus-Apolo havia dado a Teseu para vencer o Minotauro. Durante o mês pré-morte, Sócrates recebeu os parentes e os seus discípulos na prisão. A pintura a qual me refiro é o quadro do pintor francês Jacques-Louis David (imagem a seguir), que retrata Sócrates no cárcere discursando tranquilamente para alguns dos seus discípulos (aflitos), pouco antes da sua morte.

A morte de Sócrates (1787) de Jacques-Louis David

No quadro, um homem segura envergonhado (ou com temor) a taça onde está o veneno que o filósofo é obrigado a tomar. A mão de Sócrates aponta para o alto, indicando a sua reverência aos deuses, sugerindo que há uma esfera mais elevada do que a terra e a sua atitude é destemida frente à iminente morte. O homem com as mãos na parede do corredor é Apolodro, um dos discípulos de Sócrates, desesperado diante da morte do mestre. O homem sentado e com uma das mãos sobre o joelho de Sócrates é Críton, outro discípulo do filósofo. Três dias antes da sentença, tenta convencer o mestre a escapar. Platão, o discípulo mais jovem de Sócrates não estava presente no momento da sua morte (por estar doente), mas é retratado na cena criada por J. L. David com a mesma dignidade do seu mestre, sentado num banco nos pés da cama, com a cabeça curvada para baixo e o olhar distanciado do trágico momento. Ele acreditava na imortalidade da alma e que, depois de morto, Sócrates faria a viagem que o levaria ao encontro dos deuses. E por fim, fora do ambiente onde está Socrátes com os discípulos, no fim do corredor, subindo a escada, está Xantipa – esposa do filósofo na época e bem mais nova que ele, uma mulher insubmissa para o seu tempo. Ela está a olhar e a acenar com a mão em direção à cela onde o seu marido morrerá envenenado. Sócrates recusou ser vestido de morto por uma túnica especial que Apolodoro lhe havia trazido, preferindo o seu manto habitual. O quadro foi encomendado por um mecenas e o pintor inspirou-se nos diálogos sobre a imortalidade da alma escritos antes da morte de Sócrates, descrito no Fédon de Platão, onde detalha os últimos dias da vida do seu mestre. Este quadro é considerado uma das mais importantes obras de J. L. David e está no Metropolitan – Museu de Arte de Nova York.

Como vemos, a morte não é uma escolha dos humanos, ela vem quando é o momento, não importa como e nem onde, cada um de nós um dia terá este estranho destino. Sócrates, Deleuze, Nicolas Ray e Babenco tiveram tempo para a despedida, embora o primeiro de forma mais trágica, pois a sua vida fora retirada por terceiros. Todos eles, de modos diferentes, foram antecipadamente condenados à morte e tiveram testemunhas, pessoas muito próximas às suas vidas que os acolheram com carinho no momento exato da partida. Com a exceção de Ray, que morreu com 67 anos, os outros três completaram os 70 anos de idade. Não custa lembrar que muitas pessoas sequer têm tempo para saber que estão a morrer. Pensando nisso, seria bom vivermos sempre, INTENSAMENTE, pois “em pleno dia se morre”, como certa vez disse a poetisa Clarice Lispector, ela que já não se encontra entre os viventes desde 1977.

De volta ao interior do filme, afetada pela vontade de vida do Babenco, gostaria de destacar uma das sequências finais, aos 58’47’”, em que o realizador dirige Bárbara numa belíssima cena (frame a seguir). Para satisfazer o desejo dele, ela dança, decalcando a cena clássica de Gene Kelly no filme “Singin’ in the rain” (Serenata à Chuvapt ; Dançando na chuvabr, 1952). Assim, com prazer e alegria, o cineasta despede-se do cinema e da existência. O filme não é, simplesmente, sobre o processo da morte de Babenco, mas sobre o seu amor à vida e à sétima arte.

Bárbara viveu com Héctor os últimos 9 anos da vida dele, com quem aprendeu a fazer cinema. Homem cujo viver se extinguiu contra a sua vontade e a conta gotas, de 1984 a julho de 2016, aos 70 anos de idade, deixando documentada a sua resistente passagem pela terra.

Babenco, alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou” (2019) estreou e recebeu o Prémio de Melhor documentário e o Prémio da crítica do Festival de Veneza neste mesmo ano. No Brasil teve a sua primeira exibição no Festival de Cinema do Rio 2019, estreando nos cinemas brasileiros em novembro de 2020, sendo nomeado ao Oscar 2021 na categoria de melhor filme internacional. O documentário, feito em preto e branco, tem a duração de 75min e foi exibido em outros festivais de cinema, sendo o último, o FESTin-Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, em dezembro de 2020. Bárbara Paz dividiu o roteiro com Maria Camargo e a montagem com o realizador mineiro Cao Guimarães (e contribuições de montadores). Bárbara lançou também em 2019 “Babenco–solilóquio a dois sem um“, livro de memórias do cineasta Hector Babenco (1946-2016).

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
babenco-um-coracao-que-nao-queria-parar"Babenco, alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou" (2019) documenta a vida e o cinema deste realizador, para quem fazer cinema era uma maneira de estar vivo.