Inspirado na avó que começou a sofrer de demência, Florian Zeller escreveu há oito anos a peça “The Father” (O Pai), que passou por Portugal no Teatro Aberto em 2016, com João Perry no protagonismo e encenação de João Lourenço.
Adaptando agora essa mesma peça à sétima arte, e com suficientes mudanças para criar uma nova experiência, Zeller conta com dois nomes poderosos da interpretação, ambos já vencedores do Oscar, que se entregam de corpo e alma no papel de um pai e de uma filha em confronto sistemático. O centro de tudo e o ponto de vista que seguimos é o de Anthony (Anthony Hopkins), um idoso a caminhar a passos largos para a senilidade, que choca com as pretensões da filha, Olivia Colman em ter uma cuidadora. E se tudo começa com o desaparecimento de um relógio, que provavelmente até está no esconderijo habitual de Anthony, mas que ele se esqueceu, muitas outras histórias, embirrações e dramas vão surgir, ficando o espectador entregue cinematicamente à dura realidade do idoso, não sabendo bem o que é verdade ou mentira, real e imaginado, sonho ou pesadelo.
Utilizando uma narrativa fragmentada e personagens que mudam constantemente de feições, Zeller enclausura-nos na mente confusa de Hopkins, deixando-nos tão abandonados e angustiados como ele. E é nesses momentos, em que as pessoas mudam de feições, os espaços não são mais reconhecíveis, e não vale a pena tentar explicar a alguém como as coisas “mudaram”, que Hopkins entrega o melhor de uma atuação verdadeiramente devastadora em expressividade. Aqueles silêncios, as dúvidas, em que o que é afinal não é, e o que aconteceu se calhar não aconteceu, são formas cinematograficamente bem engendradas por Zeller para fazer uma viagem pela demência e confusão mental de um homem em clara perda de faculdades mentais.
E embora muitas vezes se sinta que ainda estamos numa peça de teatro, especialmente porque estamos encerrados em cenas interiores e com escassas personagens a interagir num único cenário, “The Father” consegue ser cinema em toda a sua plenitude e até ter marcas distintas do suspense e códigos do horror para deslindar o puzzle que é a mente de Hopkins.
(crítica originalmente escrita em setembro 2020)