É com muitos dos códigos e planos usados no seu cinema de horror e suspense, onde pontuam as eternas marcas de Hitchcock, que Kiyoshi Kurosawa apresenta este seu “Wife of a Spy” (Mulher de um Espião). É um dos seus melhores trabalhos, um thriller de espionagem de travo tão clássico como o período em que a ação decorre: na década de 1940, pouco depois de ser sido assinado o Pacto do Eixo entre Japão, Itália e Alemanha, e nos anos em que Kenji Mizoguchi lançou “A Woman of Osaka”, como a certo ponto até é mencionado.

Profundamente inspirado e com grande brilho a apontar para a poderosa fotografia de Tatsunosuke Sasaki – que carrega o filme entre tons esbatidos e cansados, e frequentemente nos ilumina e cega com o seu sol nascente –, “Wife of a Spy” é um poço de tensão quando se liberta da introdução lenta de personagens, todas elas carregadas pelo peso da guerra que se avizinha e pequenos dramas pessoais e morais.

Entre elas destaca-se Yû Aoi, aqui num registo bem longe da Megumi Takani que interpreta em “Rurôni Kenshi”. Aqui ela tem o fardo de aprender que o seu marido, Yasuharu Tsumori (Masahiro Higashide), veio da Manchúria com um item secreto capaz de descredibilizar o poder da época e comprovar a criminosa ligação nipónica aos nazis, capaz de gerar uma nova pestilência (tópico comum na obra do cineasta). Esmagada entre novas leis que condicionam o relacionamento com “o estrangeiro”, e sempre sob a vigilância apertada das autoridades, a dupla vê-se enredada no mais profundo dos problemas quando o divulgar ou não da informação coloca os dois e todos à sua volta em risco.

Muito inteligente na construção da atmosfera de suspense e sempre intuitivo na forma de lidar com a psicologia das personagens e de toda uma nação – presa em ideais imperialistas e patrióticos –, Kiyoshi Kurosawa molda assim um pedaço de cinema impressionante (o seu melhor filme), onde cada cena demonstra ter vida para além do plano, e onde mais uma vez a luta contra o sistema por parte do indivíduo segue como marca essencial do cineasta.

[Crítica originalmente escrita em setembro de 2020]