Carlos Reygadas tem vindo a pensar as possibilidades da intimidade conjugal, quando não mesmo “familiar” ou “humana”, ao longo de toda a carreira. Olhando para o seu percurso, e já lá vão seis longas-metragens, encontramos um corpo de trabalho onde a vida ela mesma se confunde com o cinema, num gesto de aproximação cada vez mais intenso à sua própria biografia, um gesto que procura fazer da arte uma bússola da relação que estabelecemos com o mundo. Ator nos seus próprios filmes, dá a sensação de andar à procura de uma verdade, de um sentido último que não foi capaz de resgatar de uma vivência quotidiana fulgurante, um mundo vivo e com o perfume da lama, esse nosso mundo onde os bichos e os poemas dos Homens olham o mesmo espelho. É verdade que a realidade que aparece seus filmes tem qualquer coisa de particular – é, afinal de contas um realizador completamente fascinado com a porosidade mais rugosa e acidentada da contemporaneidade mexicana -, mas um dos maiores elogios que se lhe pode tecer é precisamente essa capacidade em dar a ver uma transcendência universal que vibra a partir do mais ínfimo dos detalhes.

Veja-se por exemplo este Nuestro Tiempo, um filme que pode perfeitamente servir de súmula daquilo que tem vindo a fazer, e que coloca o próprio Reygadas e a sua mulher, a atriz Natalia López, novamente no centro de uma narrativa que dramatiza as cenas da vida conjugal de um casal à beira de uma ruptura. Juan (Reygadas), poeta com uma carreira com fama internacional, mantém uma relação aberta com a sua mulher, Esther, que é uma das principais responsáveis pela manutenção da grande quinta onde criam touros. Se esta oposição entre uma vida intelectual e uma vida vivida à flor da pele é de um esquematismo pouco convincente, não deixa contudo de nos dizer que desse confronto primitivo entre homem e mulher não há escapatória possível.

Ora, nada disto se parece propriamente com uma epifania que tenha trazido à luz do grande ecrã uma realidade que se encontre fora do alcance da experiência comum. Este é o lado mais apagado do filme de Reygadas: deslumbra-se com a sua própria “profundidade”, com um discurso cinematográfico orquestrado com batuta de autor – sempre muito atento a pulsar da vida e aos pequenos acontecimentos que dão forma aos dias– mas que não é capaz de resistir ao desejo de impressionar. Quando resulta, oferece-nos uma imagem do mundo; quando se perde, é como um artifício acessório, como se tivesse desistido de olhar para a injustiça mais dolorosa e se rendesse à beleza da arte.

Pense-se por exemplo naquela sequência em que Esther lê uma carta onde reflete sobre a vida que tem construído com Juan, um monólogo terrível em off sobre imagens aéreas que sobrevoam uma cidade durante a noite, e um dos momentos chave de todo o filme. É sopa a mais, um desvio relativamente ao que de mais essencial ali pode haver, precisamente o tipo de fuga que nunca encontraríamos, para não irmos muito mais longe, no cinema de um cineasta como Philippe Garrel.

 Garrel, esse mesmo que era capaz de ter filmado tudo isto numa hora e picos , e não nas 3 horas deste “épico” mexicano.

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José Raposo
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