A 12 de abril de 1961, o soviético Yuri Gagarin rompeu a barreira que limitava à Humanidade desde a sua génese, com isso tornou-se no primeiro Homem a aventurar-se no espaço, o que acelerou ainda mais a dita “corrida espacial” (na qual os russos concorriam diretamente com os americanos, cuja meta, como é bem sabido, foi trespassada em 1969 com Neil Armstrong a pisar o solo lunar).

Após cumprida a sua odisseia, Gagarin converteu-se numa estrela internacional e, até à data da sua morte (acabaria por falecer em março de ’68, nunca testemunhou o feito do seu análogo norte-americano), transformou-se num dos bens preciosos do regime soviético. Entre as suas desfrutações de fama efémera está o complexo Gagarine, enormes conjuntos habitacionais situados nos arredores de Paris (França), com a aprovação municipal do Partido Comunista Francês. O explorador do espaço teve a honra de o inaugurar em 1963.

Hoje, tais blocos de apartamentos (370 para ser exato, divididos em 13 andares) foram desintegrados da paisagem da periferia, os seus habitantes realojados, mas as memórias persistiram naquela estrutura fantasmagórica até à sua iminente demolição. É nessa perpetuação da recordação lívida que Youri Gagarine (sim, o protagonista apropria-se do nome do astronauta) iça a sua bandeira de resistência. À semelhança do verdadeiro Gagarine, este inventivo jovem assume-se como náufrago no isolamento do espaço, neste caso sob a forma de uma arquitetura desocupada, que vai ao encontro do olhar dos realizadores Fanny Liatard e Jérémy Trouilh que filmam o edifício como se estivessem a descrever uma nave espacial.,

Por entre travellings que rodopiam a 180º, os planos diagonais que transmitem um efeito de inexistência de gravidade e os constantes picados a caminhar pelo infinito céu, Gagarine é uma citação da semiótica espacial para nos trazer um filme de área sem sair (hipoteticamente) do planeta, onde até a banda sonora é à base de sons metalizados transporta-nos para esse mesmo quadrante. Obviamente, tais códigos são propositados pela dupla de realizadores, até porque o protagonista converte (imaginativamente) o espaço onde se insere num autêntico vaivém interestelar. Existe em “Gagarine” uma vénia ao género, ao vulto “gagariano” (se pudermos chamar assim) e sucessivamente brava caminho até aterrar no seu drama coming-of-age, mas sempre de cabeça virada para a Lua (“Já ouviste falar de subúrbios espaciais? (…) No espaço, é a área suburbana em torno das estrelas.”).

“We’re neighbors with the moon”, a canção de despedida que acompanha uma das personagens que nos guia à dita “missão espacial”, deixando o estreante Alseni Bathily (sólido) à deriva no seu faz-de-conta, a reprodução daquilo que tanto deseja. Talvez “Gagarine” seja um filme com mais olhos que barriga no sentido dramático, apoiando-se na capacidade da dupla de realizadores em transmitir aquilo que diríamos numa dimensão à parte. Este prolongado de uma homónima curta dos mesmos criadores, encontra um acolhimento a condizer com a nova fase de cinema social francês (é bastante difícil a nossa memória dissociar do recente Les Miserábles, de Ladj Ly), dando voz a minorias, mas sempre respeitando uma visão de cinema.

Neste caso, a ‘loucura’ de Liatard e Trouilh é conseguir fundir um filme de espaço (seja a interpretação que o leitor atribua) com a diversidade do meio e, por fim, sob um tom sonhador e de encanto próprio. É cedo para falar disto, só que deste lado apostamos que Gagarine terá adeptos num futuro próximo. Enquanto isso, olhamos para as estrelas e percebemos da nossa “pequenez”.

[Texto originalmente escrito em junho de 2020]

Pontuação Geral
Hugo Gomes
gagarine-o-astronauta-que-nao-souUm primeiro filme a merecer atenção e consciência de um novo tipo de cinema a contrariar as clássicas e estabelecidas canones.