O, yes,
I say it plain,
America never was America to me,
And yet I swear this oath—
America will be!

Depois de abordar o papel dos soldados afro-americanos na Segunda Guerra Mundial em Miracle at St Anna (O Milagre em Sant’ana), Spike  Lee investe pelo Vietname a dentro, rio acima – ao som da Cavalgada das Valquírias de Wagner (apenas uma das referências a “Apocalipse Now” por aqui) – para mais uma vez traçar o papel dos afro-americanos na história dos EUA, da sua fundação (Lee relembra os escravos que George Washington possuía) aos tempos correntes (movimento Black Lives Matter a ganhar o palanque), passando pelas guerras mais marcantes (II Guerra Mundial, Vietname) mostrando que as algemas físicas abandonadas com o fim da escravatura permanecem incrustadas nas mentes de um sistema discriminatório e segregador.

Aqui, neste “Da 5 Bloods”, Lee apresenta os tópicos habituais do seu cinema, vincados nas suas obras mais recentes como “Chi-raq”BlacKKKlansman, intercalando ficção com explosões da realidade (fotografias, vídeos, lições e dissertações filosóficas sobre a história dos negros), nunca perdendo o seu selo vintage, e embarcando num jogo sensorial e estético que certamente vai colidir com os códigos e regras tatuadas e perpetuadas na história do cinema por cineastas, storytellers e críticos que definiram o bom, o mau e o vilão no pensamento do cinema como arte (e indústria). 

Se inicialmente, o tom aparenta ser o de história movida a algoritmos clássicos (uma corrida ao ouro à la “O Tesouro de Sierra Madre“, com o espírito golpista moderno e contemporâneo de “Três Reis”), e de normalidade narrativa e estética (tempos recentes e flashbacks do passado em sintonia), rapidamente Lee trava nas convenções e academicismos, baralha tudo e volta a jogar as cartas.

É aí que – entre o widescreen, o formato de notícia de TV dos anos 60 e 70, os quadros 16mm das batalhas do passado e até a imagem dos ecrãs dos smartphones dos dias que correm em modo turista (sem esquecer os noticiários da rádio vietnamita em jeito de propaganda) – Lee vai contado uma história a dois tempos que serve igualmente como conto colonial com aqueles que a América apelidou de “nigger” e “gook“. Naturalmente, não é também inocente a introdução dos franceses na narrativa (os antigos colonizadores do Vietname no tempo da Indochina), que agora de forma “legal” mas igualmente mercantil permanecem a garimpar e explorar um território que não é seu. 

Por outro lado, nessa apresentação histórica entre passado e presente, Lee também baralha as presença física dos atores, juntando os soldados jovens e veteranos, a mesma carne em períodos distintos de forma discordante, obrigando o espectador a ver que passado e presente estão ligados e repetem-se, quer nos EUA como no Vietname, ontem e hoje, e que a América – como diz o poema de Langston Hughes, que surge no final – continua a não ser para todos.

É que tal como as minas plantadas nas guerras do passado que a personagem de Mélanie Thierry fala e tenta desmantelar, a história colonial plantou inúmeras “minas” que continuam a estourar e a provocar vítimas até hoje.

Delroy Lindo está avassalador

E no meio de tudo isto, no meio de um filme marcadamente militante e político do primeiro ao último minuto, sobressai ainda a estrondosa atuação de Delroy Lindo, ele que já tinha brilhado no seu cinema como no esquecido “Clockers”, onde outro grupo de “irmãos” colide, mas em plena selva urbana. 

Há um momento sublime, no meio de todos os outros de elevação de um ator que se tornou de culto, mas que prova que merecia ser das massas. Aquele em que ele, quebrando a quarta parede, abalroa Deus num discurso nos limites da repressão transformada em ódio – algo tão “Trumpista”, como a sua personagem revela ser.

Em Lindo está o fardo da América profundamente desiludida, traída e e manchada por uma história de sangue, pólvora e culpa. A América que evoca todos para a batalha, mas que esconde a glória e o conforto só para alguns.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
Hugo Gomes
José Raposo
da-5-bloods-spike-lee-e-a-desminagem-do-racismoDelroy Lindo tem uma atuação magistral num filme que consolida a carreira de um autor cuja filmografia está marcada por temas que se cruzam e falam entre si, ora a sussurrar, ora aos berros e aos tiros. Touché