É difícil livrar-se do Diabo depois de deixarmos ele entrar“, comenta-se, numa cena de “Berlim Alexanderplatz“, do alemão de origem afegã Burhan Qurbani, um indicativo do clima mefistofélico que cerca o imigrante Franz (Welket Bungué). Avesso a toques invasivos no seu corpo e alma, ele negocia a alma na sua jornada em prol de se afirmar, não como um corpo estranho num país estrangeiro, mas como parte da geografia de uma Europa ainda xenófoba. Fausto desterritoralizado, ele negocia o seu espírito com o crime em nome do desejo de legitimação pelo dinheiro. O mundo onde desagua é violento, cheio de criminosos, prostitutas, e policias intolerantes… mas é um mundo onde acredita romper com a pobreza acachapante de onde veio. Radiografia moral de uma Alemanha de caixa dois (gíria para “dinheiro ilegal”), de uma brutalidade institucionalizada, o périplo de Franz pelas franjas do delito foi emprestada do romance homónimo de Alfred Döblin (1878-1957), transformado em série de TV por Rainer Werner Fassbinder em série de TV, em 1980.

Realizador de curtas como “I am not Pilatus” e “Arriaga”, o ator da Guiné Bissau, Welket Bungué, visto em “Joaquim” (2017), dispara como o favorito ao troféu de interpretação masculina na Berlinale pela curva (anti-)heroica de margens épicas que dá à figura de Franz: como “Fausto”, ele vê na ciência… a ciência da malandragem… uma ascese sem Cristo. Na homilia da solidão, ele cruza-se com um Mefisto de rua… Reinhold (vivido magneticamente por Albrecht Schuch)… cuja função é arrebanhar novos bandidos para os seus chefes. Há entre eles uma tensão sexual homoafetiva que evoca o Fassbinder de “Querelle” (1982), só que numa luxúria engasgada. O coração de Franz vai ser assaltado mesmo por mulheres, como a proxeneta Eva (Annabelle Mandeng) e a prostituta de luxo Mieze (Jella Haase), que o salvam de um acidente convertido em cicatrizes profundas.

Mas algo em Franz não permite que ele se afaste de Reinhold, mesmo quando este começa a ver Mieze como um empecilho. São querências incompatíveis. São sexos em pólos opostos numa cidade capaz de abraçar todas as desinências verbais dos verbos “querer” e “perder”.


Welket Bungué 

Conhecido pelo seu retrato dos muçulmanos nascidos em Berlim no filme “Shahada” (2010), Qurbani entende que as angústias de Franz não são da ordem dos afetos pelo próximo e sim da lacuna existencial egressa da sua diáspora. A engenharia de som da longa-metragem, que merece o prémio de contribuição artística, ressalta uma catarse em que o “Fausto d’África”, grita, vencedor: “Virei alemão. Tenho nome alemão. Sou agora um de vocês“, numa crítica ao preconceito contra a xenofobia das metrópoles europeias.

Sob a influência de Fassbinder, essa afirmação traduz-se como imagem através de uma câmara vertiginosa, pilotada por Yoshi Heimrath, que vasculha “as tripas” de Berlim à cata de alguma ética que justifique o lugar de Franz no mundo. Um lugar digno.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
berlim-alexanderplatz-o-fausto-da-diaspora-e-o-mefisto-do-desterroQurbani entende que as angústias de Franz não são da ordem dos afetos pelo próximo e sim da lacuna existencial egressa da sua diáspora.