O filme começa com um corpo e uma mão numa cama. O primeiro pertence a Enzo Ferrari (Adam Driver) e a mão da mulher, vem a se saber, não é a da “oficial” – mas da amante, Lina (Shailene Woodley). Quanto à primeira, Laura (Penélope Cruz), recebe o marido em casa, já de manhã, com uma pistola e onde nada indica que ela não seja mesmo capaz de usá-la.

Apesar da “biopic” de um homem com duas mulheres (no filme, na realidade eram mais) e muitos carros, a velocidade do enredo e a alta voltagem dramática não são propriamente o ponto – onde este “Ferrari”, obra do veterano Michael Mann, aparece mais como um sóbrio registo de uma vida de um homem obcecado pela combustão dos motores. Com tragédias familiares pelo meio (o filho perdido, cujo túmulo visita todos os dias) e sempre pendurado no carisma de Driver, “Ferrari” alterna a humanização do homem que inventou uma das escuderias mais famosas de sempre com as corridas propriamente ditas – hoje filmadas com técnicas requintadas e particularmente espetacular no registo de um aparatoso acidente que recria um episódio real – a tragédia do Mille Miglia, em 1957.

Talvez a singularidade desta história transformar-se quase num passeio de cabriolé se deva ao facto de que os bastidores que Mann retrata são formado por essencialmente “boas pessoas” – da mulher traída que é capaz de atos de generosidade, da amante cuja personalidade sofre com a falta de maiores rasgos dramáticos (de notar aqui que Mann evita o moralismo peçonhento que abundam nos dias que correm), do piloto que amava uma estrela de Hollywood e era recíproco e por aí afora – para terminar no caso do próprio Ferrari. Este, a despeito dos métodos controversos usados com os pilotos, os quais induzia à competição extrema e que assumia a morte como um risco óbvio (dizia-se que ele evitava a proximidade afetiva com pilotos depois de perder dois amigos – abrindo uma curiosa exceção já muito mais tarde com Gilles Villeneuve – o qual também veria morrer), nunca surge muito explosivo – nem quando a mulher ameaça levar à falência a sua adorada companhia.

Assim, sem acelerar demasiado, o filme surge mais como uma homenagem nostálgica aos primórdios da Fórmula 1 – na qual Enzo veria a sua empresa, entre altos e baixos, até vir a falecer em 1988. Mas isso já seria assunto para outro filme. 

E, sim, como um comentário adicional à controvérsia em Veneza, onde estreou, “Ferrari” podia ter sido falado em italiano, mesmo que, como último recurso dada à constatação óbvia de que nomes fortes abrem as portas do mercado internacional, houvesse dobragens para Driver e Penélope Cruz e um restante do “casting” composto por italianos. Mais do que uma questão nacionalista, contribuiria enormemente para o realismo do filme – dadas as sensibilidades contemporâneas. Mas, neste sentido, foi Mads Mikkelsen a dar a pá de cal no tema: se num país que dobra todos os filmes que exibe e não respeita a língua original, qual o sentido em defendê-la?

Pontuação Geral
Roni Nunes
ferrari-velocidade-seguraNão aquece muito as turbinas, mas é um registo sóbrio e nostálgico sobre uma era