Solar, regado a uma luz de veraneio de tons cálidos, a fotografia construída pelo alemão Hans Fromm para “Afire” (“Céu Em Chamas” em Portugal), do seu conterrâneo e habitual parceiro, o realizador Christian Petzold, amplia a força da paisagem natural numa trama onde todos os sentimentos parecem incertos, nebulosos e inclassificáveis.

Vencedor do Grande PrÉmio do Júri da Berlinale 2023, a longa-metragem assume como musa a literatura, reforçando o lugar (autoral) que a palavra ocupa, não só como substantivo concreto, mas, como ente, na obra do cineasta de maior relevo internacional entre os destaques germânicos dos últimos 20 anos. O trabalho de pesquisa dramatúrgica que Petzold desenvolve a partir da imagem, no audiovisual, fala sobre memória, invenção, autoficção e gentrificação da Alemanha, bem defendido aos olhos da crítica por gemas como “Jerichow” (2008), “Yella” (2007) e “The State I Am In” (2000).

Embora tenha começado a filmar em 1988, a sua carreira só zarpou para a consagração em 2005, com “Fantasmas”. Porém a joia da sua carreira, fora o belo “Undine”, é “Barbara” (2012), cujo enredo se passa na Alemanha Oriental dos anos 1980. Lá, Barbara é uma médica berlinense banida para uma clínica médica de um país por se candidatar a um visto de saída. Profundamente infeliz com a sua transferência e temerosa dos seus colegas de trabalho como possíveis informadoress da Stasi, Bárbara permanece distante, especialmente do chefe da clínica, o bem-humorado, André. É sempre assim em Petzold: a felicidade surge de lampejo no meio a um contexto de profunda inquietude. “Afire” (“Roter Himmel”, no original) confirma essa sintomática.

O roteiro é sinuoso, por trafegar entre o drama geracional, o bom humor e a sensualidade latente. A montagem de Bettina Böhler galvaniza essa sinuosidade, essa sensação de gangorra na qual o protagonista, o jovem aspirante a escritor, Leon (Thomas Schubert), vive entre altos e baixos, engasgado na sua empáfia de virar um romancista de prestígio.

A sua angústia pode ser melhor apreciada à luz de um aforismo de Petzold. “O afeto nos dá uma identidade de pertencimento”. Essa é a frase com que o realizador alemão brindou o público da Berlinale ao disputar o Urso de Ouro e ser elogiado pela força da sua narrativa engimática. Embalado pelo sucesso “In My Mind”, do grupo vienense Wallners, a nova obra do artesão por trás de “Phoenix” (2014) presta tributo à criação literária numa articulação entre a arte da escrita e a arte do viver. A sua habitual parceira, a atriz Paula Beer, brilha no papel da misteriosa hóspede de uma casa no litoral, numa fase alta de calor, onde Leon (Schubert), anseia por uma avaliação do seu editor, desesperado por afagos no ego. Mas há incêndios ao redor, na mata, acossando os moradores e visitantes. Haverá um incêndio dentro dele também – um incêndio sentimental chamado “amadurecimento” – que mexe com a sua incapacidade de amar e sua falta de empatia. 

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
afire-palavras-sinuosas-imagens-calorosasChristian Petzold amplia a força da paisagem natural numa trama onde todos os sentimentos parecem incertos, nebulosos e inclassificáveis.