O cinema é um truque e Georges Mélies era um mágico que o demonstrou assim que pôs as mãos no fascinante invento dos irmãos Lumière. Muito tempo e toneladas de sofisticação depois, Alfred Hitchcock tornou-se um dos grandes reis dos truques: ele não só manipulou o espectador com a forma como dispôs os recursos técnicos – como também o fez através do “marketing” associado ao seu nome. Sempre atentíssimo aos comboios em andamento, apanhou o da televisão no final dos anos 50 e foi aí (embora não apenas aí) que o seu nome ficou para sempre no imaginário popular: “Hitchcock Presents…”. A Cahiérs du Cinema contribuiu a seguir – tratando de escarafunchar os seus artifícios estilísticos. O primeiro filme dele fez 100 anos em 2022; respondendo ao desafio do produtor John Archer, Mark Cousins fez o seu próprio mergulho nas narrativas do mestre.

A técnica é a mesma de sempre – e, por isso mesmo, muito aberta: desde a sua “A História do Cinema – uma Odisseia” que Cousins propõe-se ao livre voo pela história sem as prisões da ordem cronológica – tanto permitindo as audiências um olhar liberto do tempo como por vezes correndo o risco de perder maiores nexos causais. Talvez para pôr alguma ordem, o cineasta dividiu a sua abordagem da vastíssima obra de Hitchcock em seis temas: “Fuga”, “Desejo”, “Solidão”, “Tempo”, “Satisfação” e “Altura”. Claro que dentro destes tópicos é tudo uma grande livre associação que serve para releituras dinâmicas das possíveis intenções do realizador.

Quem narra a história é o “próprio” Hitchcock – 40 anos depois de ter morrido e com a voz “emprestada” do comediante e dobrador britânico Alistair McGowan. Neste sentido, a narrativa de Cousins tentar captar o que seria o sentido de humor e a ironia do seu retratado – a começar pela forma como debocha da enorme escultura feita em sua homenagem no bairro onde cresceu, em Londres. Depois “Hitchcock” diz que, a partir dali, “só vai mentir uma vez”. Mais exato seria dizer que ele vai analisar alguns detalhes das suas grandes mentiras – pequenos excertos de uma filmografia que percorreram cinco décadas e onde o documentarista irlandês teve o cuidado de mencionar obras como “Juno and the Paycock”, de 1930. “Imagino que poucos de vocês tenham visto este”, observa “Hitch”.

Das dezenas de cenas escolhidas, Cousins não foge aos clássicos e estes servem, antes de qualquer coisa, para despertar a vontade de rever filmes infinitamente vistos – como a maravilhosa cena em que James Stewart espiona uma Kim Novak de vestido verde no restaurante em “Vertigo”, quando Janet Leigh em fuga tenta vender o seu carro em “Psycho”, momentos icónicos como a luta entre Robert Walker e Farley Granger no carrossel em “Strangers on a Train”, o avião sobre Cary Grant em “North by Northwest”. As cenas surgem sob novas leituras interpretativas – às quais, de alguma forma, assentam nos entretítulos.

O filme entra por um terreno espinhoso ao mostrar detalhes biográficos onde se sobressai um casamento idílico – talvez no sentido de ressaltar o papel que Alma Reville teve na sua carreira – mas onde a sombra do caso de Tippi Hedren paira silenciosa e fantasmagórica sobre o momento. De resto, o filme serve como um sobrevoo sobre a obra de um dos grandes manipuladores (no bom sentido) da sétima arte – ainda que nem sempre preso por um fio narrativo consistente.

Pontuação Geral
Roni Nunes
o-meu-nome-e-alfred-hitchcock-vou-vos-mentir-apenas-uma-vezO filme serve como um sobrevoo sobre a obra de um dos grandes manipuladores (no bom sentido) da sétima arte – ainda que nem sempre preso por um fio narrativo consistente