Maioritariamente protagonizada por mulheres em busca de sentido existencial numa jornada de descobertas, com exceções como “Porco Rosso” (1992), a obra do japonês Hayao Miyazaki engata a sua marcha mais radical em direção à metafísica com “The Boy and The Heron” (O Rapaz e a Garçapt; O Menino e a Garçabr), encarando a melancolia. Mas desta vez opta por um menino como protagonista, no caso, um rapazinho enlutado que enfrenta a sombra omnipresente da falta da mãe.

Mahito, o miúdo em questão, é alguém que precisa aprender a se deixar amar depois de um trauma ligado ao fogo. A partir das suas cicatrizes, Miyazaki vai propor um (brilhante) ensaio de anti-História, recriando o Japão do fim dos anos 1930, menos pelos factos e mais pelas lendas, crenças e rituais, tendo sempre a finitude no seu eixo.

Reforçando a caligrafia lúdica que persegue desde a sua estreia na realização, em 1979, Miyazaki adentra pelo terreno da perda sem dar à sua narrativa uma plasticidade sombria. A sensação de mortalha está no ar, a cada passo de Mahito, mas a direção de arte (irrepreensível) é das mais coloridas de toda a sua filmografia. É na serenidade que ele reafirma a sua maestria, ainda que o filme não tenha a radicalidade de “A Viagem de Chihiro“, que lhe valeu o Oscar e o Urso de Ouro de 2002. Há uma intensa aventura ao longo de duas horas, com extrema engenhosidade no uso do antropoformíssimo, ou seja, na humanização de animais. Nunca se viu um bando de aves mais feroz no cinema, nem em “The Birds” (1963), de Alfred Hitchcock, quanto a horda de pelicanos que ataca Mahito. Pior do que ela só um bando armado de periquitos.

Essas criaturas talvez sejam parte da subjetividade fraturada de um menino órfão ou talvez sejam a fauna do umbral fantástico (uma espécie de limbo) para onde Mahito vai, movido pelas provocações de uma sinistra garça que fala, a fim de conjugar a desinência mais áspera do verbo “perder”, que é “recomeçar”, acomodar o vazio.

A presença de uma jovem que se propõe a ser uma nova força materna na sua vida vai ser uma luz para Mahito, mas não vai apaziguar as trevas da carência que o movem. É difícil não estabelecer, nesse ponto, uma conexão entre “The Boy and The Heron” e o aclamado “Drive My Car“, de Ryusuke Hamaguchi, laureado com o Oscar em 2022. Ryusuke também versa sobre as entidades que compensam amores perdidos, não numa substituição, mas num gesto analgésico da vida.

Mahito precisa de um conforto. A realidade para a qual Miyasaki entrega esta personagem doída precisa também. Talvez por isso a melodia branda do maestro Joe Hisaishi, na banda sonora, tonifique a linha de calmaria que o veterano animador procura para si no seu majestoso regresso aos cinemas, aos 82 anos. Não lhe cabe mãos a fúria de um “Princesa Mononoke” (1997). É hora da ternura.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
the-boy-and-the-heron-ludica-melancoliaHayao Miyazaki engata a sua marcha mais radical em direção à metafísica com "The Boy and The Heron", encarando a melancolia.