Poucos meses depois de ter conquistado o Grande Prêmio do Júri da Berlinale 2022 com “A Romancista e o Seu Filme”, hoje em cartaz em Lisboa, o sul-coreano Hong Sangsoo esteve no Festival de San Sebastián, em competição pela Concha de Ouro, com “Lá Em Cima” (também em circuito em Portugal), e aproveitou a sua passagem pela cidade espanhola para exibir o seu trabalho como realizador e usar o seu tempo vago para tirar fotos nas avenidas e na orla. Cada fotografia que fez é cercada de um processo singular de escuta de um artista que fez de Hemingway e Faulkner alimentos literários da sua formação no processo de entendimento do que palavra é um ser vivo. Não por acaso, em seus filmes – que ele escreve, fotografa, realiza, edita e musica, compondo as bandas-sonoras -, verbos, substantivos e (sobretudo) advérbios ganham protagonismo em sequências looooongas de conversação regadas a soju, massa e postas de peixe. Comer é viver em Sangsoo (também grafado Sang-soo). Beber é viver. Já falar… falar é perder-se. Por isso, “The Novelist’s Film” é um tratado sobre a perda, talvez o mais lírico do cineasta desde o devastador “On The Beach At Night Alone”, que rendeu à sua parceira de vida e de trabalho, a atriz e produtora Kim Min-hee, o Urso de Prata, em 2017. Ali, o processo artístico se dava a partir do alquebrar de uma subjetividade, na mais exasperante solidão. Já na longa-metragem sobre a relação entre uma autora de romances e o cinema, estuda-se a sinergia.

Na passagem por Donostia, em 2022, Sang-soo explicou ao C7nema, num depoimento, como vê o seu papel de cronista da realidade: “Hoje, qualquer coisa que me aconteceu ontem pode virar um diálogo na filmagem que rodarei hoje. Mas não significa que o meu cinema seja autobiográfico. A minha visão de mundo trabalha a partir do que ouço nas ruas”. Esse é o código de “A Romancista e o Seu Filme”, em seu preto e branco capaz de desnudar a beleza que reside na rotina, no todo dia.

A personagem central é uma escritora renomada, em crise criativa, Jun-hee (Lee Hye-young, premiada estrela de teatro na Ásia), que se encontra fora de Seul para visitar uma amiga de longa data, uma livreira. Durante um passeio, elas se cruzam casualmente com Kilsoo, uma atriz reformada, de grande talento, que fez uma pausa na carreira. Esse encontro casual dá à romancista uma ideia para um novo projeto que a pode salvar da crise de inspiração em que se encontra: transformar um dos seus romances em filme.

Numa medida que extrapola o campo, Sangsoo incorpora o espectro da teatralidade e, usando o recurso da “sequência-plano”, faz da mesa do bar um palco. É sobre uma mesa, a petiscar iguarias, a beber álcool e baforar cigarros que as suas personagens, animadamente, lançam-se numa cruzada em busca de uma potencial longa-metragem a ser rodada, unindo as mais variadas virtudes profissionais. Num momento, pergunta-se sobre o guião. Jun-hee diz não saber o que ele será, mas arrisca um roteiro simples e prosaico sobre uma crise conjugal. Outra personagem retruca que cinema precisa de plot twists, de reviravoltas, e todos se põem a atomizar essa hipótese falando não mais do enredo em si, nem do processo de composição de uma narrativa fílmica, mas das suas próprias vidas e de seus próprios anseios. Lembra o que Louis Malles faz em seu “Vanya on 42nd Street” (1994), discutindo a produção de um espetáculo, porém, com menos complacência com os cânones da arte. O cânone que interessa a Sangsoo é a beleza do dia após dia, com enigmas que se fantasia de acasos e simplicidades disfarçadas de companheirismo.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
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