Existe uma sensação integral de harmonia com a natureza, com a vida e com a sociedade que passa – com tanta beleza como solitude – de Hirayama (Koji Yakusho), o protagonista de “Perfect Days”, para o espectador. Espectador esse que teve o privilégio de assistir no Festival de Cannes, em 2023, ao melhor filme de Wim Wenders dos últimos 35 anos, ainda que deixemos uma menção honrosa para “Pina”, assinado em 2011.
“É impossível para mim filmar em Tóquio e não pensar em Yasujiro Ozu, o meu mestre espiritual.”, disse Wenders ao C7nema sobre esta pepita, uma “história simples”, tão simples, como doce, e que nasceu como um projeto de curta-metragem, encomendada por autoridades japonesas, com o objetivo de celebrar o seu sistema de casas de banho públicas de última geração. Wenders viu nessa encomenda curiosa a oportunidade de filmar um homem quase invisível numa sociedade a toda a velocidade, e que vive as suas mais perfeitas rotinas, que incluem o acordar, tratar criteriosamente das plantas, sair para o trabalho e iniciar algumas das poucas interações sociais que tem, primeiro com o seu colega fala-barato, Takashi (Tokio Emoto), depois com a namorada deste, e, finalmente, com a sua sobrinha, que um dia visita-o de surpresa. Pelo caminho, ele vai limpando exaustivamente as casas de banho públicas nos parques da cidade de Tóquio, na ala de Shibuya, sempre com o mesmo empenho e protocolo, como um artesão.
Repetidamente, sem nunca se cansar ou aborrecer, o espectador assiste fascinado à delicadeza dos atos de “a vida a acontecer”, muitas vezes entrecortadas com momentos de lazer, também eles criteriosamente metódicos, e que incluem o andar de bicicleta, almoçar num parque, tirar fotos a árvores & arquivá-las, ouvir música, recorrendo às suas inseparáveis cassetes, ou até mesmo a corresponder-se com um/a anónimo/a, através de um papelinho deixado numa das casa de banho públicas que limpa diariamente.
E essa harmonia, o estar bem com a vida e consigo mesmo, sente-se múltiplas vezes em Hirayama, embora uma cena maravilhosa, carregada de simbolismo, leva-nos a ele, descontraidamente, a ouvir deitado o célebre “Perfect Days” de Lou Reed. Esse momento musical é apenas um de uma banda-sonora recheada com nomes como Patti Smith, Otis Redding, Van Morrison e Nina Simone, complementados por referências literárias – William Faulkner, Patricia Highsmith, entre outros – que chegam até nós através das visitas de Hirayama a uma livraria.
Sem nunca especular porque o homem tem esta vida, ou diminuí-la de algum jeito, Wenders vai-nos deixando pistas que nem tudo foi sempre assim. É através da sobrinha, Niko (Arisa Nakano), a filha adolescente da sua irmã, Keiko (Yumi Aso), que encontramos o desafio deste homem em não voltar ao passado e manter a sua vida, tal qual ela é. É que quando Keiko aparece, num carro de alta cilindrada com chofer, entendemos a sua separação das raízes, por uma má relação com o pai, e uma inacessibilidade de voltar atrás.
Claro está que nesta equação poética de Wenders, que ocasionalmente nos traz à mente “Patterson” de Jim Jarmuschh, Koji Yakusho é a força maior, usando o trabalho corporal e a expressividade para nos dar respostas, na ausência de palavras. E nesse jogo entre ator e realizador, onde a própria cidade e as casas de banho são personagens que causalmente saem da sua figura de não-lugares, sai um filme absolutamente memorável, facilmente um dos mais inesquecíveis do ano.