Ancorado no que de mais icónico se tem fixado na memória coletiva dos anos 1980, “Os Passageiros da Noite”, o mais recente filme de Mikhaël Hers, transcende apesar de tudo esse maneirismo nostálgico que aqui e ali se manifesta na mais esclarecida consciência burguesa sob a forma de fetish cinéfilo. Filme aberto ao mundo e às convulsões políticas da época, “Os Passageiros da Noite” resulta melhor quando reduz a escala e abandona progressivamente os traços largos da figuração do espírito de uma época, como a dada altura parece querer fazer (a narrativa começa justamente em Paris, no dia da eleição de François Mitterrand, em 1981), e se aproxima lentamente da vida pessoal e sentimental dos seus protagonistas. 

Visto de certa maneira, é um belíssimo filme de atores – o que tendo em em consideração o milimétrico e criterioso arsenal de citação, é o tipo de inclinação que não pende exatamente para o lado da balança de Hers. De Marguerite Duras, a Eric Rohmer, passando pelos Television ou ainda Joe Dassin, a tónica cai frequentemente na abundância nos momentos de identificação com peças da tapeçaria de uma época, um imaginário invocado com muito bom gosto, mas que invariavelmente não vai muito mais além da redução mecânica da História à lógica de pequenos postais ilustrados – e nada disso é de grande valor face à presença de Charlotte Gainsbourg. É sobre si que o filme gira, e em boa verdade é a sua sensibilidade que o filme adota como bússola narrativa. 

Hers conta a história de uma família a atravessar esse momento difícil que é o da separação do casal (o ex-marido nunca aparece em cena, num fora de campo que não deixa de sublinhar o sentido dessa ausência), centrando-se na dinâmica familiar que Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), vai construíndo com os seus dois filhos, Mathias (Quito Rayon Richter) e Judith (Megan Northam). É um choque com uma nova realidade, uma realidade que implica a procura de um emprego, uma espinha que se atravessa na vida de quem dedicou toda a vida à educação dos filhos. 

Estes “acidentes de percurso” são o que de mais essencial podemos encontrar no filme, e um dos aspectos mais marcantes do cinema de Mikhaël Hers passa também pela forma como os personagens abraçam esse lado da vida: com a esperança de um amor. Sensível e de bom senso, para pegar na maneira como o pai a descreve (um personagem lateral mas de uma humanidade comovente), Elisabeth acaba por encontrar um trabalho num programa de rádio, o “passageiros da noite” que empresta o título ao filme, um programa noturno que conta com a participação de ouvintes que ligam para a rádio numa espécie de comunhão, sobretudo pela forma como partilham histórias de vida noite dentro, e é numa dessas emissões que se cruza com Talulah (Noée Abita), uma jovem adolescente e uma figura de recorte um tanto enigmática, uma presença que envolve o enredo num manto mais próximo da leveza de um encanto poético que propriamente de um retrato sociológico desses “sonhadores”  ou, para não nos afastarmos muito desse mote que também parece querer chamar o próprio espectador, dos “passageiros da noite” que habitam as sombras do mundo.

Talulah é na verdade o outro grande pilar da trama narrativa de “Os Passageiros da Noite”, ora não abrisse o filme precisamente com a sua aparição, vinda sem eira nem beira de uma qualquer paragem de metro. Elisabeth envolve-a no seu universo familiar (a tal esperança de um amor que atravessa o filme de ponta a ponta), e o percurso narrativo do filme acompanha de perto essa relação ao longo dos anos. Seguindo uma estrutura um tanto episódica e fragmentada, Hers não perde a oportunidade de aproximar o cinema da vida – as idas ao cinema são um como um foco inesgotável de iluminação, momentos onde se sente que quer o filme, quer os próprios personagens, se encontram a si mesmos. 

É essa amplitude emocional, algures entre a elegia e a celebração,  que faz de “Os Passageiros da Noite” um objeto com a capacidade de maravilhar. 

Pontuação Geral
José Raposo
Jorge Pereira
os-passageiros-da-noite-entre-a-elegia-e-a-celebracao«Os Passageiros da Noite» resulta melhor quando reduz a escala e abandona progressivamente os traços largos da figuração do espírito de uma época, como a dada altura parece querer faze), e se aproxima lentamente da vida pessoal e sentimental dos seus protagonistas.