Não é muito difícil antecipar que o entusiasmo que um filme como “Emancipação” possa gerar no público, se relacione com a maior ou menor atenção com que se encara um tema como a escravatura. Antoine Fuqua encontra-se claramente do lado dos que encontram no cinema uma possibilidade de expressão plástica do sofrimento humano, não hesitando em conduzir a narrativa de acordo com uma sensibilidade a que não será alheia a lógica do entretenimento mais espectacular. E se o uso e abuso de planos aéreos com recurso a gruas e a drones são um dos traços mais visíveis e recorrentes da pirotecnia que volta e meia toma de assalto “Emancipação“, a luta entre protagonista e um crocodilo, submersos nas águas de um pântano, é de longe o momento mais emblemático da “exploração iconográfica”, chamemos-lhes assim, que Fuqua propõe. 

De certa maneira, “Emancipação” é um épico sobre o preço da liberdade que parte de um momento histórico em concreto, os Estados Unidos da América da segunda metade do século XIX, uma América em plena guerra civil com Abraham Lincoln a conceder liberdade às pessoas escravizadas que se encontravam em estados rebeldes (a célebre Proclamação de Emancipação a que o título se refere, e que entrou em vigor de 1 de janeiro de 1863), uma realidade histórica que Fuqua cerca com a força do mito à luz da sensibilidade estética (e política) do nosso tempo – um turbilhão de “tensões”, umas mais paradoxais que outras, que mesmo não arrastando propriamente o filme para uma completa irrelevância, atrapalham alguma da “voz autoral” (passe a expressão) que se poderia tentar encontrar no discurso de Fuqua. 

Desfeita essa tentação, aquilo que fica de “Emancipação” não vai muito além de um longo efeito especial, logo a começar pela fotografia (a cargo de um habitual colaborador de Quentin Tarantino, Robert Richardson) e aquele desastrado cromatismo mudo e deslavado, que se sobrepõe a tudo a cada oportunidade. Com duas exceções, duas faces distintas mas que no fundo são a mesma moeda, um misto de Michael Bay de monóculo e de um Pedro Costa de centro comercial: a mencionada sequência da luta com o crocodilo, visualmente inventiva mas que não se deixa de sentir fora de contexto; e, num plano diametralmente oposto, o monólogo de Dodienne (Charmaine Bingwa), a mulher de Peter (Will Smith) que encoraja as filhas a resistirem perante o horror da injustiça. É dos raros momentos em que o filme sai de si mesmo e parece conversar com o “espectador emancipado”, e não tanto com o espectador refém da submissão da experiência de cinema, e que de um modo geral é a dinâmica que mais convém a Fuqua e companhia.

Partindo de uma história real, uma história que ficou cristalizada na celebre fotografia que documenta as cicatrizes nas costas de Gordon, um negro escravizado brutalmente chicoteado (o “recorte iconográfico” que serve de âncora e de ponto de partida para o filme de Fuqua), “Emancipação” é uma descida aos infernos, o inferno da política e da religião que coloca Homens contra Homens e que suja de ódio tudo aquilo que vive. Veja-se por exemplo a forma como a mesma religião que alimenta a “ordem social” que distingue entre pessoas livres e pessoas escravizadas, é a mesma que dá força a Peter e à sua família para continuarem a resistir – precisamente o diabo em pele de cordeiro que nem Fuqua, nem Richardson (e muito menos Will Smith) parecem ser capazes de reconhecer. Separado da família com quem trabalhava numa plantação no Louisiana de modo a poder servir os interesses das forças da Confederação, um horror com forma de trabalho forçado na construção de linhas férreas, Peter é um peão numa história de violência cheia de nuances que não encontram no filme uma profundidade que não seja superficial – até mesmo a circunstância de ter que combater as forças da Confederação para garantir a sua liberdade mais depressa faz de Peter numa figura predestinada à liberdade graças à sublimação do sofrimento, que um homem de carne e osso.

Pelo contrário, tudo em “Emancipação” se encaminha para uma superação na fronteira do “sobrenatural”: não há crocodilo, nem facada, nem pistola, nem tiro de canhão capazes de derrubar um herói que esteja do lado certo da História. 

Pontuação Geral
José Raposo
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