Documentário realizado por Claudia Müller, “Elfriede Jelinek – Language Unleashed” pega no universo literário e no percurso biográfico da autora austríaca vencedora do Nobel em 2004 para a partir daí desenhar um esboço de mosaico à volta dos temas e momentos chave de um vida dedicada à literatura. Mais próximo daquilo que poderíamos pensar enquanto retrato impressionista que propriamente obra de referência biográfica, o filme de Müller intercala um vasto arquivo de entrevistas de época, aparições públicas e debates em programas televisivos para lançar alguma luz sobre o pensamento da autora em relação à sua própria obra, nunca deixando para segundo plano a receção crítica e pública de um corpo de trabalho radical e profundamente alinhado com a materialidade da própria literatura. 

Nascida em plena segunda grande guerra e flha de mãe católica e pai judeu, Jelinek teve uma educação rigorosa em Viena, encaminhando os seus estudos sobretudo na área da música. Foi a mão pesada da mãe que procurou fazer da filha algo parecido com um prodígio musical: tornou-se uma organista competente, ainda que o seu destino tenha sido outro. As imagens de arquivo que Muller encontram em Jelinek um ser humano hiperconsciente do papel na linguagem na construção da sua própria identidade (refugiou-se na literatura e na leitura enquanto forma de reivindicação da sua própria autonomia face à imposição materna), uma reflexão que facilmente conseguimos estender à relação entre a forma literária e a própria mediação do mundo. Perdeu-se uma organista, ganhou-se uma escritora com uma sensibilidade aguda para com as possibilidades expressivas da linguagem, e quando nela encontramos traços de uma literatura aberta à musicalidade do texto literário ou à dimensão mais experimental do romance é também pela forma como entrou em diálogo com uma constelação de autores que deram a volta ao realismo psicológico: William Burroughs, Ingeborg Bachmann, mas também autores que fizeram do jogo experimental da linguagem uma forma de chamarem a si questões políticas do seu tempo (a influência do chamado Grupo de Viena, constituído à volta de autores como H. C. Artmann, Friedrich Achleitner ou Gerhard Rühm, foi determinante).

Müller aborda tudo isto, vincando a violência com que o seu trabalho foi sendo recebido na esfera pública. Dir-se-ia que a própria autora nunca deixou de ignorar a forma como o seu trabalho foi recebido no panorama literário (o Nobel será inevitavelmente um dos momentos chave dessa relação conflituosa com o seu estatuto de “personalidade literária”), e não estaremos muito longe da verdade se dissermos que a realizadora (mesmo não indo muito mais além da mera ilustração) consegue trazer a lume com alguma frontalidade aquilo que está em causa quando se faz da literatura um confronto com o imaginário coletivo – eis uma autora absolutamente incontornável para pensarmos hoje e agora as questões de género que tanto nos interpelam.

Pontuação Geral
José Raposo
elfriede-jelinek-language-unleashed-uma-violencia-radicalNão estaremos muito longe da verdade se dissermos que a realizadora consegue trazer a lume com alguma frontalidade aquilo que está em causa quando se faz da literatura um confronto com o imaginário coletivo