Lançado nos Estados Unidos no dia 15 de julho, sem qualquer alarde e nenhum chamariz de venda de bilhetes de tónus audiovisual, Where The Crawdads Sing (A Rapariga Selvagem) chegou aos 100 milhões de dólares calcado apenas na força do romance best-seller homónimo do qual se deriva e do boca a boca positivo. O livro de Delia Owens, traduzido em português como Lá, Onde o Vento Chora foi parar na Piazza Grande do Festival de Locarno à força dos elogios que colheu, num momento em que as salas comerciais só falavam em Thor: Amor & Trovão. Mas a literatura atropelou as BDs nesse caso e emplacou uma narrativa folhetinesca saborosa, ainda que formulaica.  

O que se vê nos últimos 30 dias na carreira comercial dessa longa-metragem resgata um velho conceito mercadológico do circuito exibidor, batizado por Hollywood como o sleeper. É um termo que se usa para definir filmes que chegam sem muito alarde mediático, mordem uma fatia fiel de público, não a largam e ficam em cartaz… ficam… ficam… resistem no gosto popular e viram assunto nas conversas mês após mês, sem se deixar abater por concorrentes mais endinheirados. Foi esse o caso, por exemplo, de Bohemian Rhapsody”, uma produção de 52 milhões de dólares, fadada ao fracasso, por uma série de crises nas suas filmagens (com direito ao afastamento do seu realizador, Bryan Singer), que, à força do legado de Freddie Mercury nos Queen, aguentou-se nas salas por cinco meses, faturando US$ 910 milhões.

Este ano, o “dorminhoco” (tradução literal do termo) é Where The Crawdads Sing, que se desenha como um dramalhão cheio de retidão nas suas propostas estéticas aparentemente simples no trânsito pelo folhetim. A sua elétrica montagem é vitaminada pela imolação em cena da sua protagonista, Daisy Edgar-Jones, conhecida pela minissérie “Normal People”. A sua presença na 75ª edição de uma das mostras mais prestigiadas do mundo é parte do interesse do diretor artístico de Locarno, o crítico Giona A. Nazzaro, em narrativas de género. Neste caso, temos uma mistura de melodrama com thriller jurídico – numa trama pautada pelo empoderamento feminino. E a personagem delineada na prosa de Delia é um primor para se retratar a resiliência, sobretudo sob a realização segura de Olivia Newman.

Após um arranque tenso, de perseguição, a realizadora de First Match(2018) dá ao enredo pinçado do livro de Delia uma cobertura de açúcar, a fim de equilibrar toda a dor que a personagem central encara. A sua heroína é uma jovem que apanha mexilhões, Kya (Daisy Edgar-Jones), criada num pântano por um pai violento cujo cinto marca o rosto dos seus filhos e da sua mulher. Kya é abandonada gradualmente pela mãe e pelos seus irmãos, até ver o próprio pai desaparecer no mapa, quando ainda é criança. Com a ajuda de um casal de comerciantes, Mabel (a ótima Michael Hyatt) e Jumpin’ (Sterling Macer Jr.), a moça vira nos 30 uma solitária, analfabeta, educada apenas pela Natureza, na sua relação com conchas. Vai aprender a ler com o filho de um pescador, o futuro biólogo Chase (Taylor John Smith), e cria anticorpos à brutalidade do mundo na sua relação com conchas e seres aquáticos à sua volta. Mas, no momento em que vê sua vida avançar, ao se dedicar ao desenho das tais conchas que coleciona, Kya é acusada de assassinato. Tudo indica que ela matou um bad boy local.

No desenho investigativo do memorialismo de Olivia Newman, ao realizar o texto de Delia, Daisy explode no ecrã com uma vitalidade estonteante na sua atuação, sem derrapar um segundo sequer em caricaturas. E doseia fragilidades e fúria com equilíbrio. David Strathairn é a única voz do elenco que se sobrepõe à dele, no papel de Tom Milton, o dedicado advogado de defesa. A edição joga com a memória, o passado e o presente de maneira sinuosa, criando uma tensão de prender o espectador na poltrona e jogar a chave fora, mesmo que a fotografia de colorido burocrático não ajude muito este sleeper, emperrando a sua vitalidade plástica.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
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