Regado a Guns n’ Roses, “Thor: Love and Thunder” não é um filme de super-heróis. É um filme com super-heróis. Um filme de deboche, algo próximo de uma comédia. Algo mais próximo do “Filme da Treta” (2006), de José Sacramento, do que de “Vingadores”. Está interessado mais em rir dos códigos de aventuras, incluindo aqueles sedimentados por “Erik the Viking”, de Terry Jones, e “Time Bandits”, de Terry Gilliam. Mas é algo sem o refinamento de um Monty Python. Trata-se de (mais) uma longa-metragem com a sanha autoral de Taika Waititi, realizador neozelandês cuja estética parece a do sketch humorístico de TV e cujo ethos dedica-se a demolições morais. A representação do masculino tem sido o seu alvo na sua entrada na franquia “Thor”, a partir de 2017, com o desastroso “Ragnarok”. A diferença é que, neste seu regresso ao universo de Asgard, a morada dos deuses nórdicos, ele lembra-se que o cinema é uma arte de imagens em movimento e não um teatro de revista. Lembra-se disso quando se esforça, dentro do que sabe, para poder apresentar uma narrativa um pouco mais ousada plasticamente. Consegue isso aqui e acolá, numa porção do filme em preto e branco (bem fotografada por Barry Baz Idoine) e na contagiante sequência inicial, na qual Thor põe os seus adversários abaixo, numa sucessão de golpes modulados pela adrenalina. É uma sequência à la John Wick, que Waititi não saberia fazer jamais. Tanto é que, no que sobra, reina o enfado. Dá preguiça ver o empenho do realizador em transformar o que nasceu para ser uma narrativa épica, nos moldes de “Conan The Barbarian” ou “Lord of the Rings”, num episódio de “Flight of the Conchords”. E, para piorar, ainda há um tratamento absolutamente irregular da vilania.  

Somados, os três filmes anteriores da franquia do príncipe de Asgard, lançados em 2011 (“Thor”, de Kenneth Branagh), 2013 (o excecional “The Dark World”, de Alan Taylor) e 2017 (“Ragnarok”, também de Waititi), arrecadaram 1,9 mil milhões de dólares. A nova produção promete elevar essas cifras, moldando um guerreiro implacável como o Deus do Trovão como um Chevy Chase fanfarrão. E há outros chamarizes, como o regressode Natalie Portman como Dra. Jane Foster, mas não apenas como física e, sim, como a nova portadora do martelo Mjölnir. Ela dignifica a releitura que Waititi tenta fazer da saga de BDs iniciada em “Mighty Thor” (2015) #1, com o guião de Jason Aaron. Nessa saga, ela vira a Poderosa Thor. Pode se dizer o mesmo da participação de Tessa Thompson, dando um tom mais pop à figura da Valquíria, agora governante de Asgard. Natalie consegue dar complexidade a um enredo que se agarra a piadinhas, traduzindo a angústia de Jane ao se encontrar na fase terminal de um cancro, que se agrava em metástases a cada uso que faz da marreta sagrada. E Tessa também escava novas potências comportamentais em Valquíria.

Mas no meio do caminho delas, e de Hemsworth, cuja star quality hoje beira as alturas, num binómio de carisma e vastas ferramentas dramáticas, existe uma pedra. Essa pedra é Waititi.

Vencedor do Oscar de melhor argumento adaptado de 2020 por “Jojo Rabbit”, no qual um rapaz alemão era amigo de Hitler (vivido por ele mesmo, uma vez mais no reino da troça), Waititi havia concorrido às estatuetas douradas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood antes, em 2005, com a curta “Two Cars, One Night”, de 2003. O filme concorreu na festa da Academia de 2005, no mesmo ano em que ele fez “What We Do in the Shadows: Interviews with Some Vampires”, com Jemaine. Nessa curta, ele cria uma estratégia supostamente documental para mostrar o que uma equipa de cineastas faz diante de três vampiros cuja verve aristocrática não parece mais compatível com um mundo interligado pela internet. De novo, ele conseguiu um sucesso, exibindo o filme na sua terra natal, no New Zealand International Film Festival, em julho de 2006. No ano seguinte, ele foi prestigiado pelo público do Festival de Sundance que aplaudiu a (hilária) comédia “Eagle vs Shark” ( 2007), também com Jemaine, e foi, com ele, filmar a já citada série “Flight of the Conchords”.

Em 2010, regressa a Sundance e vai à Berlinale, com “Boy”, comédia agridoce sobre um pequeno fã de Michael Jackson. Na sequência, roda mais uma curta “42 One Dream Rush” e embarca nas séries “Super City” (2011) e “The Inbetweeners ” (2012), enquanto prepara um filme baseado em “What We Do in the Shadows”, que é lançado em 2014, mais uma vez em Sundance. Gasta 1,6 milhões de dólares nas filmagens – realizadas em Wellington, em setembro de 2012 – e consegue 7 milhões nas bilheteiras, configurando um êxito comercial. De novo, ele e Jemaine vão a Berlim, agora concorrendo na mostra Geração, pela sua toada de comédia adolescente, indisfarçavelmente inspirada em John Hughes (1950-2009) e o seu seminal “The Breakfast Club” (1985). Fora os elogios alemães em solo berlinense, Waititi e Jemaine conquistam 26 prémios pelo filme, incluindo a láurea especial do júri do Festival de Turim pelo argumento, e o voto do júri popular da seção Midnight Madness do Festival de Toronto. Sttges, considerado o maior festival de cinema fantástico do mundo, realizado desde 1968 em terras catalãs, deu-lhe uma menção honrosa, seguida do prémio do júri popular. Foi daí que a Marvel se encantou por ele. Mas não avisaram a ele do que os fãs de BDs gostam. E nem o que esses fãs respeitam.  

Filmes de super-heróis, sustentáculo da economia cinematográfica, são, por essência, épicas de autossacrifício: existem cordeiros que se oferecem à imolação em prol da Humanidade. Não existe humor na espinha dorsal desse gesto. Pode haver gargalhadas como apêndice, como efeito de oxigenação da tensão. Pode haver um respiro para o que há de bruto na peleja do sacrificado contra a moléstia moral que leva um vigilante a se arriscar em prol de quem precisa de auxílio. É o que se via em “Homem-Aranha 2”, uma das obras-primas do filão, pilotada por Sam Raimi, em 2014. Pode e deve haver arejamento, pois o riso é um convite ao carisma. Mas esse riso não pode se superpor a essência das narrativas de super-heróis, cuja génese dos quadradinhos vem da ação e não da troça. Existem bds para rir e existem as de super-herói. É assim desde as primeiras viagens galácticas de Buck Rogers, em janeiro de 1929: a pedra fundamental pop da jazida. Mas Waititi não percebeu isso muito bem quando finalizou o corte do histérico “Thor: Ragnarok”, o mais vazio das longas-metragens da Marvel.

No desespero de dar ao conglomerado das bandas desenhadas um novo Deadpool – uma produção de 58 milhões da Fox, que, em 2016, arrecadou 783 milhões -, o cineasta neozelandês resolveu substituir a seriedade épica comum aos vigilantes uniformizados por galhofas sucessivas: é piada atrás de piada, mesmo nos momentos em que elas são desnecessárias. O resultado beira um programa humorístico enrugado.

Porém, esse erro mostra-se ainda mais grotesco frente à maneira como Waititi apresenta a figura do Mal, Gorr, ao escrever o filme em parceria com Jennifer Kaytin Robinson. Apesar de ter nas mãos um dos atores mais talentosos da atualidade, Christian Bale, o cineasta não consegue justificar a vilania que tenta imputar a Gorr. O seu advento é inverossímil. Pior do que isso: Waititi faz com que o público se apiede dele, apesar dos seus crimes envolverem assassinatos. Gorr é alguém que se perdoa à primeira vista. E, para agravar a situação, o redesenho, no trânsito da BD para os ecrãs faz lembrar o Santo dos Assassinos de “Preacher”, da DC Comics. É uma leviandade sem fim, que emperra o que prometia ser um entretenimento com vigor intelectual.

E fica pior quando Thor chega a um Olimpo gourmet, onde as divindades de diferentes civilizações se refugiam, sob a batuta de Zeus. Este é vivido por um Russell Crowe nas raias da caricatura, envergonhando o legado do majestoso “Gladiador” (2000). É mais uma evidência do desaparecimento daquele Waititi cheio de retidão que realizou o episódio 8 da temporada 1 de “The Mandalorian”: ou seja, um Waititi sóbrio, a brincar de Sergio Leone. Ficou o Waititi da galhofa, com pouco ou nada a oferecer.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
thor-amor-e-trovao-filme-da-treta-versao-marvelDá preguiça ver o empenho do realizador em transformar o que nasceu para ser uma narrativa épica, nos moldes de “Conan The Barbarian” ou “Lord of the Rings”, num episódio de “Flight of the Conchords”.